A Intolerância Epistêmica é Soficida
É preciso retomar o espírito ecumênico que deu fôlego às ciências no Século XX
É comum ouvirmos ecos de brados vociferantes e indignados sempre que se anuncia mais um estudo que tenha por objetivo relembrar-nos das influências do “Primeiro Mundo” no ambiente epistemológico e ontológico de ex-colônias. Hoje se espera que nossos ouvidos deem atenção apenas àquelas vozes que raramente tiveram suas palavras anotadas no papel, vozes de quem reivindicava tomar a parte que lhes cabia na circulação das grandes ideias, no direito de serem escutadas. É a bem da verdade que lhes demos a atenção devida, que tantas vezes fora negada. Apenas o mais ingênuo — ou desonesto — dos teóricos ignoraria que muitas dessas ‘grandes ideias’ alcançaram indubitável relevância sem que se possa creditá-la à veracidade de sua mensagem intransigente ou ao mérito de sua retórica inspiradora: simplesmente receberam, como por um empréstimo de deferência, o prestígio adquirido em virtude (ou vício?) do poder dos grupos que as advogavam. Há 250 anos atrás, Adam Smith, por exemplo, supôs que a única explicação para teses econômicas mercantilistas tão controversas dominarem os círculos formuladores de política pública de sua época seria que elas deveriam servir aos interesses de quem já tinha poder e desejava mantê-lo.
Mas se é, portanto, indispensável que a pesquisa ora tenha uma atitude cética quanto a quaisquer discursos ou abordagens que herdem os pontos cegos de tradições investigativas hegemônicas, parece mentira termos de alertar que é preciso tomar cuidado para não jogarmos o bebê fora junto com a água do banho! Se a atenção a questões outrora negligenciadas nos ajuda a não sofrer de sede intelectual, como uma fonte que jorra por dentro e dá de beber ao espírito, a nascente ainda prescinde de um leito de água, uma reserva fundamental que a sustente.
A força das ciências só aumenta na medida em que ajuntamos às áreas de estudos ‘tradicionais’ — que ainda se mostram terrenos de grande fertilidade — a pesquisa heterodoxa, não como substituto perfeito, mas como complemento essencial. É pela concentração conjunta, como um laço de solidariedade que amarra a divisão de trabalho intelectual, que nosso conhecimento da condição humana se eleva; é sempre preciso ser prudente com as viradas na direção de grandes novidades, porque o apego pelo novo facilmente degenera-se em uma compulsão, o oposto do misoneísmo. Se o interesse pelo todo se fragmenta, rui-se em seguida a motivação que nos impele a saber mais sobre as partes. Eis por que nada de substancial que se baseia na inovação interminável e esquecer-se das raízes subsiste — a árvore se ramifica, mas os galhos secam, porque as raízes deixaram de achar água para a seiva. Eis como uma floresta petrifica, como os sibilos da ventania deixam de balouçar folhas verdejantes, somente farfalhar gravetos secos: nada sobrevive à desertificação da curiosidade!
Se me for permitido fazer um adendo completamente subjetivo sobre o erro fundamental que comete esta disposição pueril — pois é mesmo próprio da criança alhear-se constantemente — gostaria de citar a perspectiva de Sergei Bulgakov, grande teólogo da tradição Católica-Ortodoxa que iniciou sua carreira intelectual com um livro de filosofia da economia. Como o compreendo, diria que se Deus viesse a perder o interesse por nossas experiências, pela radical atualização da condição humana que cada um promove ao não fazer mais do que viver — somos, todos, pois, vanguardistas na arte da vida — não teríamos mais qualquer propósito. A consciência divina, onipotente, onipresente e onisciente por princípio, livremente criou-nos em Liberdade para tornar-se, por nós, ‘onicognoscente’, por assim dizer:
The world as cosmos and the empirical world, Sophia and humanity, maintain a living interaction, like a plant’s nourishment through its roots. Sophia, partaking of the cosmic activity of the Logos, endows the world with divine forces, raises it from chaos to cosmos. Nature always perceives her reflection in man, just as man, despite his faults, always perceives his own reflection in Sophia. Through her he takes in and reflects in nature the wise rays of the divine Logos; through him nature becomes sophic. Such is this metaphysical hierarchy. This resolves the puzzle of human creativity, for in all fields — in knowledge, economy, culture, art —it is sophic, that is, it partakes of the divine Sophia. Man’s participation in Sophia, which brings the divine forces of the Logos to the world and plays the role of natura naturans toward nature, makes human creativity possible. Man can ‘‘conquer’’ nature only insofar as he potentially contains all of nature within himself; he comes to possess nature in the process of realizing this potential. Thus, as Plato pointed out, knowledge is really remembrance—not in the theosophical sense of remembrance of past lives but metaphysically. Human creativity is really a re-creation of that which preexists in the metaphysical world; it is not creation from nothing but replication of something already given, and it is creative only insofar as it is free re-creation through work (Sergei Bulgakov, 2000 [1912] p. 145).
O mundo como cosmos e o mundo empírico, Sophia e a humanidade, mantêm uma interação viva, como a nutrição de uma planta através de suas raízes. Sophia, participando da atividade cósmica do Logos, dota o mundo de forças divinas, eleva-o do caos ao cosmos. A natureza sempre percebe seu reflexo no homem, assim como o homem, apesar de suas falhas, sempre percebe seu próprio reflexo em Sophia. Por meio dela, ele absorve e reflete na natureza os raios sábios do Logos divino; por meio dele, a natureza se torna sófica. Tal é essa hierarquia metafísica. Isso resolve o enigma da criatividade humana, pois em todos os campos — no conhecimento, na economia, na cultura, na arte — ela é sófica, isto é, participa da divina Sophia. A participação do homem em Sophia, que traz as forças divinas do Logos ao mundo e desempenha o papel de natura naturans em relação à natureza, torna a criatividade humana possível. O homem pode “conquistar” a natureza apenas na medida em que potencialmente contém toda a natureza dentro de si; ele passa a possuir a natureza no processo de realização desse potencial. Assim, como Platão apontou, o conhecimento é, na verdade, lembrança — não no sentido teosófico de lembrança de vidas passadas, mas metafisicamente. A criatividade humana é, na verdade, uma recriação daquilo que preexiste no mundo metafísico; não é criação a partir do nada, mas a replicação de algo já dado, e é criativa apenas na medida em que é recriação livre por meio do trabalho.
Tenho aqui em mente pesquisas que olham seja para contribuições de intelectuais pertencentes a sociedades que estiveram no topo das hierarquias construídas no processo de globalização dos últimos séculos, seja para ideias provenientes do contexto metropolitano e que tiveram enorme influência na formação de sociedades modernas. Temas como esse têm sido relativamente estigmatizados, como se denotassem uma escolha injusta e ilegítima frente à escassez de tempo e recursos que determina as fronteiras da produção intelectual de qualquer época.
A preferência por estudos sobre matrizes de pensamento, supostamente, indígenas ou autóctones, ou pelo legado de conceitos formados ‘de baixo para cima’, das ‘margens ao centro’, hoje parece pendular, ambivalente, entre um ceticismo saudável e enriquecedor, potencialmente capaz de abrir-nos a novos horizontes investigativos, e uma jovialidade moralista de tom quase (ou mesmo integralmente) acusatório que, pela própria natureza vaga de suas imputações estruturalistas, recusa-se a apontar réus claros, atacando toda uma herança por sua influência nos inconscientes.
A contradição deste mau alvitre, quando levado a cabo pelas tortuosidades do moralismo mal definido, é que seu réu é irresponsável por princípio, no sentido de não poder ser cobrado por nenhuma das consequências dele resultantes. Esse tipo de crítica me parece ter um valor — senão nulo — negativo para a República das Ciências, como gostava de dizer Pierre Bourdieu, pois, como quase toda revolta iconoclasta, resulta-se contraproducente, intolerante, permitindo-nos soabrir janelas antes emperradas ao mesmo tempo, contudo, que nos tranca em uma torre de arrogância. Quem perde somos nós, que deixamos de entrever nuances sem as quais é impossível termos uma boa noção da frágil e volúvel construção de crenças e identidades formadas a partir dos contatos humanos.
O ecumenismo foi a força-motriz das volições acadêmicas durante o Século XX. Uma aura modernista pairou, quase por igual, tanto nos centros de estudos mais recatados e tradicionais quanto nos polos de tecnologia. A formação de engenheiros, cientistas da computação, médicos e de vários outros cursos de graduação à primeira vista mais dedicados à techné do que à arché, lastreados por sua utilidade social e não por finalidades intrínsecas e autorreferentes, ainda eram guiados por currículos que assumiam que seus alunos seriam merecedores de uma educação verdadeiramente liberal, enquanto as Humanidades eram apreendidas, efetivamente, como uma conversa que retira de toda uma herança civilizacional a capacidade de autocrítica que a permite seguir viva.
Nada disso quer dizer que o Século XX ele mesmo, isto é, o período cronológico compreendido por 1900 a 1999, fora um século de tal valorização e reprodução universal do igualitarismo moral que subsidiaria o grande heroísmo da solidariedade absoluta. O “Breve Século XX” foi definido, na realidade, por um zeitgeist impossível de ser contido cronologicamente: este foi tanto o século da ascendência e queda do élan vital quanto do trans-historicismo reformador do Vaticano II; foi este o século de Foucault e de Oakeshott, de Pocock e de Latour, de Maritain e de Tawney, de Sartre e de Camus, de Pessoa e de Joyce; foi este o século de provincialização gradativa da Europa e de reapropriação radical da herança universal da civilização humana. O Século XX é, por definição, o século de todos os grandes pensadores da história da humanidade enquanto humanidade. De certo modo, foi o século de rebatismos, de renascimentos por excelência. Ortega y Gasset não estava, de modo algum, errado em afirmar que a era do “homem-massa” era, também, um ponto alto da História — não um período de decadência, mas de sínteses sucessivas tomando lugar no auge da dialética histórica.
Não há aqui qualquer tom nostálgico por um passado idílico — mas há, sim, em mim, fome pelo espírito vintista. No fundo, não nos livramos dele! O Século XX atravessou os anos 2000 sem dar qualquer importância ao calendário gregoriano, mas parece ter se tornado farsa, pastiche de si mesmo, caricatura malfeita de suas potencialidades, esmoreceu em reflexo à descrença generalizada em sapere aude, porque este ideal, tão honroso como descomunal, veio ao mundo não com a doçura, a humildade que lhe vai tão bem, mas com a Vontade de Poder que tanto sufocou o Longo Século XIX… Ele aguarda seu contraponto, a voz em fuga que lhe dá vazão e que a todos é capaz de cativar. Não à toa, o Século XXI, ainda sem identidade própria, é, portanto, o Século de Papa Francisco, do Primaz Michael Curry, do Patriarca Ecumênico Bartolomeu I, e do Arcebispo Rowan Williams!
A Academia, ao contrário do que muitos acreditavam que viria a ser, veio perdendo, de pouco em pouco, seu conteúdo efetivamente Moderno (e, pois, divino) que lhe era tão caro, e que dignificou como nunca aquela instituição medieval que já havia nascido, como um Mosteiro, em absoluta tensão com seus entornos. O fenômeno foi similar ao da Arte Moderna, que aos poucos desembocou em um modernismo, uma afetação de outsiders que preferiam formar suas bolhas condescendentes, isoladas, compostas por uma sociedade autorreferente, autocentrada e lânguida. A Universidade tornou-se espaço de soberba — não porque seus membros exibem qualquer falha de caráter particular, mas simplesmente porque, enquanto instituição, passou a representar uma Aristocracia fora de lugar, indiferente à excelência e ao mérito, mantida tão-só pela teimosia de todos aqueles que, negando as condições com as quais foram trazidos ao mundo, decidiram deixar de efetivamente transformá-lo, e fazer da universitas, ironicamente, uma renegação autocontida das regras que regem a vida social fora de seus muros. Se era a função própria da Universidade, como da Igreja, de efetivamente sinalizar a Virtude — independentemente do quão bem sucedida pode ser qualquer cooperação mundana — por meio de uma participação ativa no seio da vida coletiva, hoje é de se temer que ela deixe de nos dar sinais que apontem para qualquer Revelação ética, que ela deixe de indicar, não por palavras, mas por ações, a possibilidade de uma Vida Superior, de uma vida mais bela, mais altaneira, mais valiosa, e passe a ser apenas mais uma instituição terapêutica que promova somente a autoafirmação de seus próprios membros, e não seja mais acessível a ninguém que a veja de longe.
O que temo é que as novas modalidades de intolerância epistêmica, paradoxalmente derivadas de um dos impulsos mais gloriosos do Século XX, a saber, a tolerância ativa e a inclusão dialógica, sejam soficidas. Denudadas da Caridade Universal, do Amor despropositado mas intrinsicamente interpessoal e plenamente acessível, as novas gerações deixem de ser criativas, e passem a ser meramente reprodutivas das distâncias que sonhamos tão intimamente ultrapassar. Nesse caso, só poderemos contar com um deus ex machina para nos trazer a Salvação, em vez de nos dar mais uma “solução.” Das engrenagens de uma “indústria das ideias”, os únicos outputs inesperados são as falhas de funcionamento, produtos natimortos, mercadorias não-circuláveis, são lixo, em seu sentido mais próprio.
No subsolo da amargura, aquele setor da fábrica que nem mais precisa de lâmpadas, pois nenhuma alma é vista, onde o trabalho levou à ideologia produtivista aos píncaros de sua própria lógica e, assim, exterminou-se, não é possível uma solidão regeneradora como a de Pavel Florenski:
I am alone, absolutely alone in the whole world. But my sorrowful loneliness aches sweetly in my heart. At times, it seems that I have become one of those leaves that are whirled about by the wind on paths. I rose today in the early morning and seemed to sense something new. Indeed, in a single night the back of summer had been broken. Golden leaves whirled over the ground in serpentine, wind-driven eddies. Flocks of birds were set in motion. There were files of cranes, and a swirling of crows and daws. The air was filled with the cool aroma of autumn, the smell of decaying leaves, a longing for the distances. I went out to the edge of the woods. One after another, one after another, leaves were falling to earth. Like dying butterflies, they were describing slow circles in the air as they de scended to earth. On the fallen grass the wind was playing with the “liquid shadows” of tree limbs. How good it was, how joyous and sad! … It seems that my whole soul is melting in sweet agony at the sight of these fluttering leaves as I smell the fragrance of faded aspen groves. It appears that the soul finds itself in seeing this death, that it has a foretaste of resurrection in this fluttering. Seeing death! I am surrounded by it. … Again and again, every sin, every “petty” baseness is present, ineradicably distinct, in my consciousness. More and more deeply, “petty” inattentions, egotism, and heartlessness are branded into the soul with letters of fire, gradually crippling it. Not that there was ever anything clearly bad, anything clearly, tangibly sinful. But always (always, O Lord!) it was in the petty things. And out of petty things, mountains grew! And looking back, one can see nothing but foulness. … Everything whirls. Everything slides into death’s abyss. Only One abides, only in Him are constancy, life, and peace. … Outside of this One Center, “the only certain thing is that nothing is certain and that there is nothing more miserable or arrogant than man.” … Yes, in life everything is in a state of unrest, every thing is as unstable as a mirage. And out of the depths of the soul there rises an unbearable need to find support in the “Pillar and Ground of the Truth” (1 Tim. 3:15) … not in just one of the truths, not in one of the particular and fragmented human truths, which are unstable and blown about like dust chased by the wind over mountains, but in total and eternal Truth, the one Divine Truth, the radiant and celestial Truth, that “Truth” which, according to the ancient poet, is the “sun of the world” (Pavel Florensky, 1997 [1914], pp. 11-12).
Estou sozinho, absolutamente sozinho no mundo inteiro. Mas minha dolorosa solidão dói docemente em meu coração. Às vezes, parece que me tornei uma daquelas folhas que o vento agita nos caminhos. Acordei hoje de manhã cedo e pareceu sentir algo novo. De fato, em uma única noite, o verão se rompeu. Folhas douradas rodopiavam pelo chão em redemoinhos serpentinos, impulsionados pelo vento. Bandos de pássaros se puseram em movimento. Havia filas de grous e um turbilhão de corvos e gralhas. O ar estava impregnado do aroma fresco do outono, do cheiro de folhas em decomposição, de uma saudade das distâncias. Saí para a orla da floresta. Uma após a outra, uma após a outra, as folhas caíam na terra. Como borboletas moribundas, descreviam círculos lentos no ar enquanto desciam para a terra. Na grama caída, o vento brincava com as “sombras líquidas” dos galhos das árvores. Como era bom, como era alegre e triste! … Parece que toda a minha alma se derrete em doce agonia ao ver estas folhas esvoaçantes enquanto sinto a fragrância dos bosques de álamos murchos. Parece que a alma se encontra ao ver esta morte, que tem um antegosto da ressurreição neste esvoaçar. Ver a morte! Estou cercado por ela. … Repetidamente, cada pecado, cada baixeza “pequena” está presente, inerradicavelmente distinta, em minha consciência. Cada vez mais profundamente, desatenções “pequenas”, egoísmo e crueldade são marcados na alma com letras de fogo, gradualmente aleijando-a. Não que alguma vez tenha havido algo claramente mau, algo claramente, tangivelmente pecaminoso. Mas sempre (sempre, ó Senhor!) estava nas coisas pequenas. E das coisas pequenas [mesquinhas e triviais] montanhas cresceram! E olhando para trás, não se vê nada além de imundície. … Tudo gira. Tudo desliza para o abismo da morte. Só Um permanece, só Nele há constância, vida e paz. … Fora deste Centro Único, “a única coisa certa é que nada é certo e que não há nada mais miserável ou arrogante do que o homem”. … Sim, na vida tudo está em estado de inquietação, tudo é tão instável quanto uma miragem. E das profundezas da alma surge uma necessidade insuportável de encontrar apoio na “Coluna e Firmeza da Verdade” (1 Tm 3:15) … não em apenas uma das verdades, não em uma das verdades humanas particulares e fragmentadas, que são instáveis e levadas como poeira levada pelo vento sobre as montanhas, mas na Verdade total e eterna, a única Verdade Divina, a Verdade radiante e celestial, aquela “Verdade” que, segundo o antigo poeta, é o “sol do mundo”.
Na metafísica do Amor reside também as bases da verdadeira epistemologia. Ágape tem preeminência na hierarquia ontológica da Vontade humana: é ela quem guia o Eros e a Philia para além das fronteiras da experiência enclausurada. O Amor não é partidário, não é divisível, ele, por natureza, escapa à contingência, é água que nunca para, e mesmo quando aparentemente estanque — tal qual os lagos, é água sempre refeita e renovada, interligada pelos céus e pelos lençóis com o Oceano que a tudo permeia. Como lindamente nos escreveu Charles Péguy, em suas Memórias da Juventude, qualquer instituição precisa ir além dos rasos interesses, dos planejamentos, das metas, ao menos se quiser perdurar; nenhuma instituição é carregada através dos tempos pelos objetivos que visa cumprir, assim como nosso coração não bate apenas para que possamos trabalhar com o que quer que seja. A razão de ser da Universidade não reside em “produzir ciência”, nem em “mudar o mundo”; não reside em sua missão social, nem em sua contribuição econômica; não reside sequer em manter acesa a tocha da civilização — ainda que todas essas incumbências sejam nobres e quase indissociáveis dessa instituição. Não, o que a mantém — e, pois, o que a manterá viva — nunca poderá vir de fora; tem de vir de dentro, como Sopro de Espírito, um fazer autojustificado, mas não por isso encerrado em si mesmo; sua razão de ser vem da atividade universitária que faz da Universidade o que é. E não há prática mais liberal do que a Educação — princípio universal e primordial de toda Ciência. A ‘Economia Política’ nada pode com a Œconomia Divina:
Everything begins in mysticism and ends in politics. The interest, the question, the essential is that in each order, in each system, mysticism be not devoured by politics to which it gave birth. Politics laughs at mysticism; nevertheless it is still mysticism which feeds these same politics (Charles Péguy, 2001).
Tudo começa no misticismo e termina na política. O interesse, a questão, o essencial é que, em cada ordem, em cada sistema, o misticismo não seja devorado pela política que o gerou. A política ri do misticismo; no entanto, é sempre o misticismo que alimenta essa mesma política.
Se o Valor de tudo o que fazemos só pode ser, verdadeiramente, encontrado no Todo, a pluralidade é inerentemente valiosa. A Modernidade é, de fato, uma Sinfonia Divina. Não podemos deixar que seus ideais mais heroicos e transcendentes sejam traídos pelo afastamento covarde do mundo, de seus dilemas e de suas imperfeições; não podemos deixar que ela seja traída por intolerância em relação à Dialética que subsume todos os eventos. Se o Espírito do Século XX ainda permanece identificável ao nosso redor, que o tiremos das vestes próprias à Comédia, e encenemos uma nova Tragédia redentora. Oremos juntos: que da solidão atual, dos círculos segregados, das bolhas incomunicáveis surja uma nova fome pela Vida Social, uma nova sede pela Comunhão, um novo Amor imparável. Que honremos Sophia com nossa Liberdade e Solidariedade Fraternal. Não matemos em nós o Amor sem o qual nenhum conhecimento é possível por não sabermos lidar com nossas inseguranças. Evitemos o soficídio a todo custo.
Amém.
Bibliography
Charles Péguy (2001), Temporal and Eternal, Liberty Fund, Indiana.
Pavel Florensky (1997 [1914]), The Pillar and Ground of the Truth: An Essay in Orthodox Theodicy in Twelve Letters, Oxford University Press, Oxford.
Sergei Bulgakov (2000 [1912]), Philosophy of Economy: The World as a Household, Yale University Press, New Haven.