JUDGE: “Do you judge me?
FRANZ: Shooks negatively his head.
JUDGE: “Do you have a right to do this?”
FRANZ: “Do I have the right not to?”JUIZ: “Você me julga?”
FRANZ: Balança a cabeça negativamente.
JUIZ: “Você tem o direito de fazer isso?”
FRANZ: “Eu tenho o direito de não fazer?”— A Hidden Life, Terrence Malick
Introdução
A história humana arrasta o peso de seu passado, arando, conscientemente ou não, com ele o solo dos novos caminhos ainda virginais. Alexis de Tocqueville, n’A Democracia da América, escreveu que, curiosamente, os restos mais duráveis das civilizações mais esquecidas são os túmulos sagrados, e que mesmo sociedades mais complexas, populosas e opulentas tendem a caber ainda em seus próprios berços. Com imponente asserção, o historiador francês, entusiasmado por tudo que presenciara nos Estados Unidos, concluiu na abertura da obra que ao mesmo tempo em que homens e nações sentem os efeitos de suas origens — pois as circunstâncias que os revestiram e incubaram durante a infância influenciaram todo o restante de seu amadurecimento — também de todas as obras do homem, a mais duradoura é aquela que melhor se relaciona a seu fim e a suas misérias, à inevitabilidade da decadência, do envelhecimento e da morte.
Mas hoje não falarei deste historiador e sim da própria História. Mais especificamente, de uma de suas sombras mais marcantes: na erupção vesuviana da Modernidade, poucos deixaram marca mais viva nas formas dos últimos séculos do que Martinho Lutero. Não haverá aqui biografia alguma. Meu foco é na Filosofia Política do Grande Reformador.
Cada vez mais, em nosso mundo, percebemos que a tentativa de expurgo da transcendência pela Modernidade, se não foi natimorta, ao menos tem-se demonstrado absolutamente desnecessária. Não a porei aqui em julgamento, muito menos, como tem sido comum, irei amarrar a Modernidade, vendada, a um paredão, e enfileirarei os soldadinhos… Meu objetivo é mais simples. Deixando à parte as ricas discussões que gravitam o tema, desejo apenas discorrer sobre um assunto: em busca da libertação humana, o caminho do desencantamento e da secularização integral parece cada vez mais um beco sem saída, e a aconchegante pousada que estaria na chegada permanece habitada pelas poeiras do tempo.
Se é verdade ou não que esta foi a via principal adotada pelos homens que se chamaram ‘modernos’, se chegamos sem dúvidas ao ponto onde há apenas retorno, se nunca de fato pusemos o pé nessa estrada, como diria Latour, nada disso aqui importa aqui. Vejamos os fatos, e deixemos brevemente as especulações: Deus vem retornando com força na retórica e nas práticas, na vida pública e privada, na identidade das comunidades e dos indivíduos. Foi inevitável aos curiosos perguntarem de onde veio esse fenômeno tão velho e tão novo, como pôde ressurgir, como a brasa novamente encandece quando tudo que parecia haver eram cinzas? Seguindo a fumaça, vi uma cruz ardendo sob as ruínas do Palácio Presidencial. Resolvi buscá-la nos escombros, e das tantas vozes que a louvavam, atentei o ouvido, primeiramente, a uma só, imponente, corajosa, robusta, que vociferava em alemão. Era Lutero. Perguntei-lhe o que pensava do governo, e como ele o conciliava com a religião... O que se segue foi o que entendi de sua resposta!
Política e Religião, na visão de Lutero
Em seu livreto de 1523, “Sobre a Autoridade Secular” (Wie weit sich weltliche Obrigkeit erstrecke), Lutero discute profundamente este tema que lhe foi tão caro pessoalmente. O texto foi escrito após Lutero sofrer na pele algumas das consequências de sua tradução do Novo Testamento: as mão dos representantes do Estado saxão sujaram-se com a tinta recém impressa nas cópias do Evangelho em alemão, e como não tinham o costume de ler na própria língua, talvez tenham se confundido quando chegaram às Epístolas de Paulo e acharam que as mãos manchadas só poderiam “ser lavadas com sangue”! Será que talvez o duque Jorge não lesse também nem sequer latim, e por isso apossou-se tão apressadamente das cópias alemães do Evangelho, ávido por finalmente saber do que tanto falavam nas missas, cujas palavras nunca havia entendido? O fato é que um édito de recolhimento, por ele promulgado, veio a público com o subterfúgio de servir à autoridade da Santa Sé. Nada poderia ter influenciado mais a escrita e as publicações do ex-agostiniano do que tamanho egoísmo; ao reunir para si em tantas pilhas do Livro Sagrado, tal como ocorre com as riquezas, todos passaram a olhar para as Escrituras com ainda mais inveja e vontade de saber que coisa valiosa era essa que levara ao Príncipe apossar-se toda para si!
O estímulo que todos os censores deram ao ardente servo de Cristo foi profundo, e não é sem surpresas que o leitor note a ocorrência constante de argumentos políticos sobre tolerância e a dissenção na Obra de Lutero. Neste pequeno texto, escrito em resposta ao édito supracitado que ordenou o recolhimento de todas as cópias do Novo Testamento que ele havia traduzido, o professor da Vitemberga defende a possibilidade da insurreição legítima contra a autoridade (tanto secular quanto religiosa), a separação explícita e formal entre os deveres do governo “espiritual” e do governo secular, e a liberdade de consciência, revestido sua retórica com um grandioso pano de fundo bíblico e uma oralidade próxima a um extenso, mas inflamado, sermão. Se Lutero não fundou, com a própria pena, a Modernidade, sem dúvida ele a captou com muita precisão, principalmente quando pensamos na conciliação entre fé e razão cuja harmonia, acredita-se, foi redescoberta nos últimos anos nas democracias ocidentais!
Em primeiro lugar, qual o papel que Lutero atribui ao Estado e qual atribui à religião? À religião e aos religiosos cabem os assuntos da salvação da alma; ao Estado, os assuntos de salvação dos corpos, muitas vezes necessária à salvação da alma. Para Lutero, ainda que raros no mundo, os verdadeiros cristãos não precisam de Lei senão à de Deus, porque tudo que fazem é justo, porque nunca se permitem diminuírem os outros já que buscam sempre serem os menores, porque tudo sofrem e a tudo perdoam. Ainda que, todos sabemos, quase nenhuma disputa no mundo seja encenada por duas pessoas que sabem e acreditam estarem errados, nem a crença pessoal de cada uma em sua retidão levaria duas partes cristãs à disputa em busca de Justiça, pois a parte que se sente injustiçada aceitaria a injustiça, como Cristo ofereceu a outra face após o tapa. A Lutero, a situação ignóbil é uma oportunidade de aprendizado para desapegar das contendas mundanas.
Tal como monges budistas enaltecem em seus deliciosos best-sellers, é preciso agradecer pelos momentos que nos tratam com indignidade, pois são com eles que moldamos nosso verdadeiro caráter, que perdoamos os corrompidos, e que treinamos a força interior. Mas isso não significa fazer tudo que o mestre mandar, apenas aceitar o que quer que ele nos faça. Nesse sentido, a calma e compassiva desobediência de Henry David Thoreau estava sendo antecipada por Lutero ao analisar os direitos e deveres do cidadão com relação a seu soberano: ninguém possui o dever de agir injustamente. O que quer que seja feito com o cristão em seguida, cabe a ele aguentar… e aos outros reivindicar. Pois é responsabilidade dos outros que a justiça seja feita e mantida. É nossa responsabilidade impedir as injustiças com os outros. Lutero, assim, não estaria conclamando uma antiética: muito pelo contrário, a força coletiva em defesa do bem comum estaria ainda mais, assim, assegurada, na medida em que os bons cristãos, quando aviltados, nada fariam por si mesmos, a ninguém recorreriam. Mas os justos precisam ser salvos, aqui e lá, e dessa forma o escritor das 95 teses consegue garantir que não há imoralidade no ofício dos que fazem e dos que aplicam as leis, desde que não punam por prazer próprio, nem visem a qualquer interesse pessoal senão o bem de sua comunidade.
A Lei, diz enfim Lutero, serve aos injustos. E de fato, como nota, “o mundo e as multidões são não cristãos e permanecerão assim”, pois, como bradou Soren Kierkegaard, “a multidão é inverdade”. O autor reconhece um forte componente autodestrutivo nas pulsões da humanidade, e nota que, sem a Lei, o mundo rumaria rapidamente para sua desertificação. Mas os cristãos poderiam viver desse modo aparentemente anárquico, suspensos no Reino de Deus que, aos outros, parece tão diluído no Reino dos Homens, sem se submeterem às determinações dos legisladores? Não, porque é por servilidade e por amor que os cristãos se entregam de boa vontade às ordens dos soberanos. É pela manutenção da autoridade do governo secular que os males que assolam os não-cristãos(-verdadeiros), por eles mesmos promovidos, são refreados.
A medida da perfeição de uma pessoa, para Lutero, não está no status ou em quaisquer outras condições externas, mas no coração, na fé, no amor, e quanto maior o peito, maior a fé e maior o amor, maior a perfeição de alguém; contudo, Lutero sabe do poder que as condições externas exercem sobre os indivíduos. Ao tratar de más influências, o autor percebe o quanto a riqueza de alguém pode insuflar aquele desejo tirânico, do qual Adam Smith fala em suas Palestras de Jurisprudência, em ter sob seu controle os mais pobres; percebe o quanto é milagroso um Príncipe ser justo e não derivar prazer de ser o carrasco de sua nação; percebe o quão facilmente o orgulho perturba a paz de um povo; e, por fim, percebe que tentativas de impor às mentes certas crenças apenas reforçam os pecados para todos que vacilam, por serem obrigados a mentir. A consciência mantém-se inalcançável pela Espada, mas o peso do mundo dobra tanto os joelhos fracos dos oprimidos quanto aumenta a força do pisão dos poderosos.
Mesmo que este estado de coisas possua um papel no Plano Divino que Lutero crê desvendar, e que o autor saiba ser temerário julgar antecipadamente, sua experiência não o impede de ressalvar que, em regra, os governantes são os maiores imbecis e os piores criminosos sobre a face da terra, devendo-se esperar deles pouco de bom — e em geral, preparar-se ao pior. Mas isso não leva o autor a dar início àquele Liberalismo tão maldito nos dias de hoje, que restringiria ao máximo a experiência religiosa ao foro íntimo.
A soberania da consciência é a pedra angular do sistema teológico luterano, mas a vida pública, se quiser ser mais pacífica, mais ordenada, mais amável, deveria aceitar ser atravessada por valores do Cristianismo e pela graça divina, sem que isso traga qualquer contradição às suas teses políticas. Sua coerência se mantém porque, a Lutero, “é correto e necessário que todos os príncipes sejam bons e cristãos.” Seu ponto, de modo um tanto refinado, é que príncipe algum possui jurisdição na mente e na alma de seus súditos, mas isso não significa que a política ou qualquer ação coletiva apenas veja perdas ao associar-se intimamente à religião. Em tempos nos quais cada vez mais pessoas clamam para que o Estado reconheça a beleza e a importância da transcendência na experiência coletiva, Lutero sem dúvida traz ricos pensamentos ao debate, caso não se rechacem suas ideias por advogarem em favor de uma modalidade de transcendência específica.
Em um mundo ideal, o governo espiritual e o governo secular se complementam perfeitamente, servindo, um, para formar o conteúdo moral de justiça dos cidadãos, e o outro para impor a paz e obrigar o cumprimento de regras básicas de conduta. Lutero vê certa piedade na aplicação rigorosa das leis, quando esta não ocasionar mais injustiça do que a que se busca punir: ao impedir que uma pessoa vá ladeira abaixo em uma vida de péssima conduta, abre espaço para a redenção que cabe ser oferecida pelos representantes da religião. Como para ele “o cristão executa toda sorte de obra de amor sem que ele próprio tenha necessidade delas”, o Estado ideal seria um prolongamento desse amor, jamais impondo a crença cristã, mas dela colhendo belos frutos: todas as obras que não se originam do amor são condenáveis, sejam elas feitas por mim, por ti ou por um funcionário do governo.
Seria, ademais, grande obra de vilania, não de amor, toda aquela que buscasse tornar a consciência individual cativa. A autoridade secular não legisla a alma — e nem que queira conseguirá. A consciência é apenas manifesta com precisão a Deus, e portanto o reformador vê não só inutilidade mas impossibilidade de se coagir a crença em algo. Para ele, “cada um deve decidir por sua conta e risco em que deve acreditar e deve cuidar para que acredite corretamente”. Os grilhões postos ao corpo nunca conseguem atar os pensamentos às correntes. A força não alcança contato com o interior, ainda que sirva para deformá-lo. Que as pessoas errem!, vai dizer Lutero, que aprendam com seus erros — deixemos que aprendam. Não há nada pior do que alguém que entrega seu entendimento prisioneiro de formulações dos outros e abdica de supervisionar por si mesmo as ideias que lhe dizem respeito. Seu apelo à experiência me remonta novamente às Palestras de Jurisprudência, quando Smith concluiu não haver necessidade da proibição da Igreja Católica na Inglaterra, porque, dizendo, creio, ironicamente, uma pessoa estúpida o suficiente para não perceber a superioridade do anglicanismo não precisava ser punida duplamente. Heresias, quando combatidas dessa forma, para o alemão, assentam-se mais firmemente no espírito. Qualquer ideia quando não retirada pelo argumento, mas pela brutalidade, firma mais fundo suas raízes, e mais profundamente expandem seu domínio sobre as vontades. Com a liberdade diminuta, a chance da devoção à “fé verdadeira” torna-se, assim, menor, e o apego à heresia cresce.
Lutero, inclusive, chega a relacionar, de passagem, a liberdade de consciência à prosperidade de uma nação. Os governos que extrapolam seus deveres e trituram a tolerância apenas, para ele, quebrarão os pescoços de seus próprios cidadãos, reduzindo suas terras e suas populações à miséria e à penúria. O excesso de amplitude da Lei conduz assim ao mesmo resultado de sua completa ausência. “Ai de ti, ó terra, cujo rei é criança”, lamenta-se no Eclesiastes. Aceitar a existência do pensamento divergente é a marca da maturidade de uma nação que se pretenda próspera e pacífica, mas Lutero em momento algum deixa de conceber a importância vital do Cristianismo como fonte do viço. Um dos rumos mais claros tomados pela Modernidade estava traçado pela pena furiosa de um homem que esbravejava por seu direito de esbravejar. A Lei, aplicável a todos, nunca com o mesmo rigor aos doentes e aos sadios, não pode pretender-se acima da Razão, pois é dela que se derivaria a Lei.
Para o Grande Reformador, em suma, vemos que a consciência supera em valor quaisquer leis e tradições, ainda que possa ser enriquecida por elas, e isso Lutero não nega em momento algum de seu livro. A razão não deve ser aprisionada seja por barras, por letras ou por vontades. E a grande lição que legou — e que centenas deram forma e prática, talvez, seja análoga àquela dada por São João Crisóstomo mais de mil anos antes:
Não somos responsáveis por não convencer aqueles que nos ouvem, mas apenas por lhes dar conselhos. […] Dizei-me: não coramos se desistirmos da salvação de nossos irmãos […]? […] se cada um tomar as mãos de um de nossos irmãos negligenciados, vós rapidamente promovereis a edificação de todos nós (São João Crisóstomo).
Mas ao contrário de Lutero, Crisóstomo não vê piedade alguma em punições, nem acredita que Cristo as consinta. A história das ideias está em eterno debate, tal como todo homem está consigo mesmo — quer saiba disso ou não, como Prudêncio declarou há mais de 1500 anos atrás em seu clássico poema Psicomachia, todos estamos sempre “travando guerra contra os inimigos da alma, isto é, as paixões malignas.”
Quando percebemos que a história arrasta muitas ideias claras e leves que pululam à espera de serem revistas, admiramos alguns caminhos antes pouco percorridos e percebemos sua fertilidade, e ao olharmos novamente para frente, vê-se uma estranha e bonita convergência de rumos, com novas opções para escolher: um novo momento decisivo se abre após toda perscrutação. Dissidências nunca foram extintas, apenas silenciadas. A busca pela uniformidade absoluta da vida humana é um pesadelo maníaco, e todo afrouxar de laços sufocantes vê, em um primeiro momento, voos displicentes de liberdade, antes de a maturidade acalmar os corpos e reinstaurar a prudência dos comportamentos. Resta-nos buscar reconhecer nossos berços, e aceitar nossos túmulos, pois a morte das narrativas é o fim da história.
O mundo moderno, à época de Lutero, irrompia no horizonte de decisões da humanidade, mas até então parecia bastante convencido de que a fé seria uma questão central da vida moderna. Claro, isso se daria apenas quando fosse aceito o ideal de que a compreensão e os debates poderiam tornar-se, um dia, o hábito e a lei, deixando cada vez mais embainhada a Espada, abrindo-se mão de seus golpes frios e, de todo modo, futilmente desumanos.
O Estado assim poderia começar a servir, mais do que ser servido.

Bibliografia
Martinho Lutero (2005), Sobre a Autoridade Secular, WMF Martins Fontes, São Paulo.
São João Crisóstomo (2022), Riqueza e Pobreza: Sermões do Boca de Ouro São João Crisóstomo, Paz e Terra, Belo Horizonte.