*Esta é a primeira parte do texto François Perroux e o “patrimônio da Civilização Humana”, a ser publicado aos poucos*
1. Quem foi François Perroux?
Comecei este Substack dizendo que o início do Doutorado tem sido um alento, e escrevi apenas por que razoavelmente poderíamos supor que não seria dadas as condições atuais da Academia. Vou agora mais direto ao ponto pessoal: estudar sabendo que semanalmente terei aulas com dois dos maiores historiadores intelectuais brasileiros do pensamento econômico é fantástico. Vou tentar entrevistá-los para meu Podcast Synesis: History of Ideas em breve. As duas figuras se chamam Hugo da Gama Cerqueira, um dos maiores responsáveis pela revisão historiográfica da Obra de Marx no Brasil; e Alexandre Mendes Cunha, meu orientador e, aos poucos, amigo pessoal, um dos maiores responsáveis pelo reconhecimento da historiografia intelectual do Brasil lá fora, especialista na ascendência do Cameralismo germânico, no pensamento econômico do Império Luso-Brasileiro, e - descobri recentemente - também assíduo estudante de teorias de Desenvolvimento escritas no século XX.
As primeiras aulas com meu orientador foram magistrais, abençoando uma saleta de poucos alunos privilegiados com as sutilezas da aplicação da história intelectual contextualista à vastíssima, e pouquíssimo lida, Obra de François Perroux. O texto que segue, advirto ao leitor, rompe com o estilo diarista que segui até o momento, e servirá para cristalizar tanto minhas anotações em sala de aula, quanto minhas anotações da leitura de alguns dos livros de Perroux - leitura essa, claro, corrida, até porque, para a tristeza de Michael Oakeshott, a educação é hoje sim uma “race in which the competitors jockey for the best place” [1] e há muito tempo deixou de ser uma “conversation”. [2] Na parte (I) dos textos que planejo dedicar ao pensamento de Perroux, baseio-me fundamentalmente na aula do Professor Alexandre, um dos poucos historiadores atuais a ter lido a maior parte das publicações de Perroux. Alexandre foi, inclusive, o primeiro pesquisador a consultar seu arquivo pessoal recentemente aberto ao público nos arredores de Caen.
Perroux foi um economista controverso, talvez como todo economista. O bom uso das faculdades dedutivas infundidas na Alma pelo Relojoeiro Universal - infelizmente desempregado desde que Steve Jobs terceirizou seus iPhones para a Foxconn em Shenzhen, que antinomia! - nos compele a perguntar, antes de mais nada: é possível uma pessoa que, adolescente, escolheu cursar economia, ainda jovem permaneceu no curso, já maduro foi trabalhar como economista, e que idoso orgulhava-se de fazer parte do mesmo hall de pessoas como Milton Friedman, John Maynard Keynes e eu, bater bem da cabeça?! As leis cósmicas que determinam a conduta humana por meio das paixões, impelindo os homens, tal como forças irmãs da gravidade, a fazerem mal a si mesmos e aos outros, inevitavelmente, sem qualquer livre-arbítrio, não mentem nunca: não, não tem como bater bem. Mas então eis aqui um fato curioso, quem sabe salvífico, sobre Perroux: ele não era aluno de economia! Ufa. Sua vida acadêmica começou na Faculdade de Direito de Lyon onde graduou-se, mestrou-se e doutorou-se. Muitos não sabem, mas a maior parte das faculdades estritamente dedicadas às ciências econômicas é muito recente; desde o século 17, tópicos de Economia Política e, mais tarde, de ‘economia pura’ eram ensinados como apenas um dos ramos da Jurisprudência Natural.
O alívio, contudo, dura pouco, ao aprendermos que Perroux era Católico. Para a maior parte das pessoas é difícil de imaginar um economista cristão que não recite, antes de dormir, a “oração de Paul Johnson”, como batizada por Christopher Hitchens, o pervertido historiador americano que, como um anjo pornográfico, tinha mais interesse em saber o que grandes intelectuais do Cânon Ocidental faziam dentro de quatro paredes e o que escondiam em suas cuecas do que se dar ao trabalho petulante de folhear seus escritos:
‘Fear of hellfire’, he told me, kept him in the Roman Catholic Church. He added that all the same he often broke the church’s commandments. I already knew that, or thought I did until he added wolfishly: ‘You see, I quite often pray for people to die’ (Christopher Hitchens, 1989). [3]
Não foi à toa que o economista Luterano Paul Heyne escreveu um famoso ensaio denominado “Are Economists Basically Immoral?” como complemento ao seu famoso manual para estudantes The Economic Way of Thinking (1980), ou que Ernst Friedrich Schumacher, economista Budista e Católico, sentiu-se compelido a lançar um dos títulos mais marcantes da história da economia: Small Is Beautiful: A Study of Economics As If People Mattered (1973). É preciso sempre ser reticente quando abordamos pessoas cujo ganha pão é enxergar trolley problems em tudo e mais ainda quando eles acreditam que o maquinista do bonde é Deus.
Mas ainda que nada nos leve a crer que Perroux recitasse as palavras Johnsonianas ao leito na hora de dormir, seríamos muito precoces caso julgássemos que, apenas por não ser economista de formação, ele seria, automaticamente, um economista humano por profissão. De fato, a aula começou com uma advertência: “Perroux, tudo nos leva a crer, parecia ser bem desagradável como pessoa.”
Por mais inimigos que pudesse ter acumulado no caminho, Perroux alcançou certo renome mundial - ainda que hoje o autor tenha sido relativamente esquecido - e manteve-se ocupando alguns dos postos mais elevados da Academia Francesa quase até o fim do século XX. A altura era tal que, se não chegava ao Olimpo onde habitavam os maiores intelectuais públicos de sua era como Keynes (tendo coordenado algumas das principais edições de sua Obra na França), Hirschman (com quem trocava correspondências e citações frequentemente) e Schumpeter (tendo escrito a Introdução à sua teoria da destruição criativa, adicionou ao “efeito inovação” schumpeteriano o chamado “efeito dominação” perrouxiano), ao menos distanciava suficientemente suas orelhas incomumente longas das reclamações iradas que incitava em seus adversários. Ascendeu, é claro, porque mais alto do que o covil dos deuses, residiam suas pretensões. Tendo escrito mais de 40 livros e centenas de artigos durante 60 anos de carreira, Perroux fez incursões valiosas nas mais diversas áreas da ciência econômica, aprofundando debates sobre o uso de diferentes teorias econômicas nas relações internacionais e sobre a (des)utilidade política do economista.
O aspecto que mais me interessou em sua personalidade foi sua resoluta multidisciplinaridade. Tendo dado aulas em 1936 na Universidade de São Paulo (USP), o escritor francês angariou algum prestígio em solo tupiniquim bem cedo na carreira, e o Brasil segue sendo um dos poucos países que se resguardam a preocupação eliotiana de alargar a vida de um autor pela preservação de sua memória (“…of the dead is tongued with fire beyond the language of the living…”).

Seu trabalho mais conhecido é, na verdade, uma coleção de ensaios e artigos já publicados mas expandidos intitulado A Economia do Século XX, publicado em 1961, onde apresenta suas teses sobre desenvolvimento, distinguindo, magistralmente, “progresso” econômico de “crescimento” econômico. Quando aprendemos, contudo, que sua publicação vem logo após um de seus escritos de maior liberdade crítica, normativa e estilística, Europe Sans Rivages (1954), nunca traduzido para o Português, uma longuíssima crítica à formação da União Europeia e a seu ‘isolamento’ para o resto do mundo, percebemos que A Economia tinha uma intenção mais altaneira do que, meramente, descrever as tendências das relações comerciais globais após as grandes guerras e à universalização dos Estados-Nação. Mas Perroux também conseguiu fama e ser traduzido para diversas línguas com investigações não econômicas.
Um de seus livros mais vendidos no Brasil, Os Mitos Hitleristas: problemas da Alemanha contemporânea (1936), traduzido em 1937 por ninguém mais, ninguém menos do que Cecília Meirelles, contestava as aberrações históricas propagadas pela ideologia nazista antes mesmo da invasão à Polônia. Outra obra também muito comentada foi Le Pain et la Parole (1969) que, segundo um artigo publicado no Le Monde no mesmo ano, é um trabalho de teologia católica que tentava ultrapassar o “estruturalismo como filosofia natural da tecnologia avançada”, supostamente responsável por “despedaçar o Homem.”
Desde cedo, como iremos ver mais a frente, Perroux desejaria ser capaz de inspirar um redirecionamento da Técnica a serviço dos seres humanos, em vez de nos tornarmos seus escravos. Essa visão foi defendida com maestria na conclusão de um de seus livros mais maduros, Alienation et Societé Industrielle (1970), uma tremenda jornada filosófica e histórica sobre a ideia de “alienação” com o advento da Revolução Industrial, que denota um ar bem mais liberal do que o que encontramos em seus textos do período interbellum:
Les progrés des techniques de l’information et de la communication, la restructuration économique et politique des sociétés sollicitent l’invention par les esprits amis de la lumiére (animi et animae) — d’un oecuménisme du XXème siécle (Perroux, 1970, p. 180).
O progresso das tecnologias da informação e comunicação, a reestruturação econômica e política das sociedades demandam a invenção, por espíritos amigos da luz (razões e almas)*, de um ecumenismo do século XX.
* Não sei latim. Tradução provavelmente errada.
As citações literárias e filosóficas abundam em seus livros, cuja bibliografia chega a mencionar Alfred Marshall, John Milton, Molière e Gunnar Myrdal um embaixo do outro! Foi dessa miscelânea intelectual, desse interesse profundo pelo “Homem como um todo” (l’Homme Complet, como chamava) e não apenas pelo homo economicus - tendo ‘decretado’ sua morte 60 anos antes de Samuel Bowles - que veio sua revolucionária Teoria de Desenvolvimento Desequilibrado, aclamada por conceitualizar os “polos de crescimento”, até hoje referência seminal na Economia Regional.
Antes de prosseguirmos para a parte 2, veja o quadro construído por Philippe Hugon, colocando lado a lado as diferenças entre a abordagem neoclássica para o estudo do desenvolvimento econômico e a abordagem de François Perroux:
Em resumo, Perroux acredita que os modelos de competição perfeita e de equilíbrio geral mascaram um problema mais complexo que afetava a teoria neoclássica até então: uma incapacidade sistemática de lidar com a dinâmica real das relações humanas, baseada não na igualdade, mas na desigualdade inevitável entre agentes, regiões, e Estados. Com a desigualdade como fato basilar da economia, atores do desenvolvimento buscam diferenciar-se, desigualar-se para transformar suas condições. Com isso, provocam não só disputas e rivalidades entre concorrentes, mas conflitos entre pessoas de carne e osso, entre regiões diversas ocupadas por um mesmo povo, ou entre Estados. Esses conflitos, por sua vez, devido às dissimetrias, determinam relações de dominação, conceituada por Perroux (1964, p. 33) como um agente ou unidade econômica A com poder para provocar um efeito irreversível sobre B, que não possui a capacidade para transformar A de volta em mesmo grau. Mais do que tudo, fica claro no início do Economia no Século XX, Perroux acredita haver nos modelos econômicos um problema fundamental de representação, por não levarem em conta que os encontros, desencontros e efeitos de agentes uns sobre os outros não podem ser compreendidos como reações mecânicas:
L’équilibre général semble donc être tout autre chose que ce que l’on y voit souvent. Par lui-même, à lui seul, il n’est pas une représentation correcte de la vie des économies marchandes, ni une figuration satisfaisante des conditions d’optimum, ni même un moyen sûr de classer et de comprendre les changements. Il est un schème logique d'invention et de vérification qui exprime les tensions entre les activités des sujets et les exigences du tout qu’ils forment ensemble ; il produit une référence première et inéliminable, en statique ou en dynamique, en économie soit décentralisée ou régie par un plan, qui oriente les constructions mentales par quoi nous rendons peu à peu maîtrisables les incompatibilités qui opposent les projets humains à contenu économique. En conséquence, chaque fois que les relations entre sujets, entre adversaires, sont présentées comme des relations entre objets, entre contigus physiques, la fécondité du schéma est compromise (François Perroux, 1964, p. 13).
O equilíbrio geral, portanto, parece ser algo bem diferente do que costumamos ver por lá [no mundo real, onde “as atividades, com seu caráter oneroso, a técnica, que impõe servidões” e o “balanço global entre mercadorias trocadas” devem todas ser levadas em conta tanto pelo “planejador central” quanto “pelo mercado livre”]. Em si, não é uma representação correta da vida das economias de mercado, nem uma representação satisfatória das condições ótimas, nem mesmo um meio seguro de classificar e entender as mudanças. É um esquema lógico de invenção e verificação que expressa as tensões entre as atividades dos sujeitos e as exigências do todo que eles formam juntos; ela produz uma referência primeira e ineliminável, estática ou dinâmica, numa economia descentralizada ou planificada, que dirige as construções mentais pelas quais gradualmente tornamos controláveis as incompatibilidades que opõem os projetos humanos ao conteúdo econômico. Consequentemente, sempre que as relações entre sujeitos, entre adversários, são apresentadas como relações entre objetos, entre objetos físicos contíguos, a fertilidade do esquema fica comprometida.
Ao analisar como esse modelo - com todos os seus méritos teóricos - cria, todavia, uma cegueira teórica ao se tornar o único método de compreensão dos dilemas econômicos com seu caso ideal, Perroux propõe que apenas um modelo dinâmico e focado no fato onipresente da concentração de capital é capaz de compreender as vicissitudes reais do processo de desenvolvimento econômico, como as distorções possíveis em diferentes planos, os entraves verdadeiros que cenários diversos nas relações internacionais podem provocar aos países não dominantes, e, por fim, os impasses presentes em todos os objetivos de política nacional. Ver-se-ia, assim, que a busca pelo desenvolvimento internacional precisa contar com a atuação ativa dos países dominantes por um dever humano maior. No mais, seria, assim, mais fácil reconhecer que os mercados de trabalho e de bens possuem natureza inerentemente política. Apenas incorporando-se à teoria econômica teorias críveis de poder e dominação pode o Estado ser reconceitualizado para permitir o progresso moral e a evolução das capabilidades dos seres humanos a ele confiados. Para isso, Perroux entende que precisa ser capaz de organizar seus mercados - não apenas as “regras do jogo” - e seus modos de produção de maneira a condicionar inovações, mudanças produtivas, transformações na técnica e nos espaços de vida socio-econômica para o bem ‘espiritual’ das pessoas, para sua felicidade e dignidade plenas, sem confundir “crescimento” e “enriquecimento” com “progresso”.
No próximo texto, iremos traçar as origens e o contexto de sua tese.
Notas / Traduções
[1] “race in which the competitors jockey for the best place” em Português: corrida em que os competidores disputam o melhor lugar.
[2] Os leitores em inglês não entenderão o trocadilho, e os leitores em português talvez também não; em suma, provavelmente ninguém entenderá o trocadilho mas “race” em português denomina-se “corrida” e “corrida” pode ser também um adjetivo para denominar algo que passa rápido… como uma corrida!
[3] ‘Fear of Hellfire…’ em Português: “O medo do fogo do inferno”, ele me disse, o manteve na Igreja Católica Romana. Acrescentou que, mesmo assim, frequentemente quebrava os mandamentos da Igreja. Eu já sabia disso, ou pensava que sabia, até que ele acrescentou, com a voz de um lobo: “Veja bem, eu frequentemente rezo para que as pessoas morram.”