François Perroux e o ❝patrimônio da civilização humana❞ (II)
Uma breve história intelectual da noção Perrouxiana de desenvolvimento
*O texto de hoje inclui as subseções 2.1 e 2.2; na próxima sexta, irei postar as seções 2.3 e 2.4, terminando, finalmente, a breve história intelectual das teses de desenvolvimento de Perroux*
2. Antecedentes de sua Teoria de Desenvolvimento
Perroux, durante seu doutorado, foi orientado por René Gonnard, autor de um livro relativamente conhecido à época, História das Doutrinas Econômicas (1921). Sua tese debruçou-se sobre o ‘problema da determinação do lucro’, valendo-se, ao que parece, majoritariamente de fontes italianas, alemães e austríacas, países onde o pensamento corporativista - cada vez mais influente - crescia em oposição tanto ao ‘comunismo’ da Revolução Russa como ao capitalismo ‘libertário’ ocidental. Tendo concluído o grau, Perroux foi, em seguida, laureado com uma prestigiosa bolsa da Rockefeller Fellowship em 1934. Em vez de ir para os Estados Unidos, como era comum aos Rockefellers, tomou a ousada decisão de se manter na Europa, usando os recursos para um tour intelectual por Roma, Berlim e Viena, onde assistiria de perto a ascensão do corporativismo fascista. Falaremos disso em mais detalhes na seção 2.2, mas primeiro, vamos tecer um contraste entre as teorias de desenvolvimento dominantes que Perroux, desde mais novo, pretendia opor-se.
2.1 Contra equilíbrios perfeitos
Esta seção é meramente explicativa, contextualizando não os antecedentes da teoria de Perroux, mas as teses anteriores contra os quais fora formulada. Ela será baseada em uma longa, mas brilhante, explicação de Hirschman, em seu The Strategy of Economic Development (1958), livro que cita diretamente Perroux, e que recebeu do autor francês longos elogios em sua troca de correspondências.
No início da década de 40, a Welfare Economics ganhava cada vez mais atenção. A Segunda Guerra Mundial transformou o ‘mundo em um palco’:
All the world’s a stage,
And all the men and women merely players;
They have their exits and their entrances,
And one man in his time plays many parts,
His acts being seven ages.William Shakespeare, As You Like It (1623)
O espetáculo, contudo, era um absurdo. Uma insanidade. Nunca antes a humanidade como um todo pôde, tão claramente, perceber-se como irmã senão estando à beira de dividir tão opostamente as fundações da Família Humana que o telhado, em breve, esmagaria a todos em sua queda vertiginosa. Foi nesse contexto que a Economia do Desenvolvimento despontou, dedicada a compreender não apenas o Grande Enriquecimento e a Revolução Industrial mas, também, como o Império da Razão, que parecia conquistar todos os cantos da Terra, poderia ter resultado no momento mais irracional de toda a história. Condorcet, no início do Terror da Revolução Francesa - uma negação análoga do “culto à Razão” defendido por seus expoentes políticos - em seu Esboço de um quadro histórico do progresso do espírito humano (Esquisse d'un tableau historique des progrès de l'esprit humain) publicado postumamente em 1795, discorreria que o “progresso”
is subject to the same general laws that can be observed in the development of the faculties of the individual, and it is indeed no more than the sum of that development realised in a large number of individuals joined together in society (Condorcet, 2012, p. 2).
[está sujeito às mesmas leis gerais que podem ser observadas no desenvolvimento das faculdades do indivíduo e, na verdade, não é mais do que a soma desse desenvolvimento realizado num grande número de indivíduos reunidos em sociedade.]
As duas grandes guerras do século XX, e as centenas de outras que as acompanharam, dariam a entender, contudo, que em vez de amadurecer, o Homem estaria ou se infantilizando ou chegando à senilidade. Na peça de Shakespeare, o verso sobre a comédia da vida humana desemboca numa bela reflexão sobre as “seven ages” de todos os seres humanos, e parecia, para muitos, que havíamos chegado na derradeira:
Turning again toward childish treble, pipes
And whistles in his sound. Last scene of all,
That ends this strange eventful history,
Is second childishness and mere oblivion,
Sans teeth, sans eyes, sans taste, sans everything.
Os holofotes da academia viraram-se para o ‘mundo subdesenvolvido’ que, em resposta à autodestruição europeia, levantava suas vozes reivindicando assentos na mesa. Se a Europa sobrevivesse à beligerância generalizada, seria preciso redimir-se. O ‘mundo desenvolvido’, em vez de ‘chutar a escada’ para que outros não subissem e alcançassem seus altos patamares, teria de incorporar uma nova missão salvacionista, sob influência de um novo humanismo globalista, centrado em reformar os fundamentos das relações internacionais de até então de tal modo a transicionar-se do paradigma da competição global para o da cooperação global. Sob esse contexto, lançou-se a famosa tese do “balanced growth” de Paul Rosenstein-Rodan, formulada sobre o insight relativamente autoevidente de que as ‘decisões de industrialização’ por parte de uma firma ou outro ‘agente econômico’ dependem das decisões alheias. Como Hirschman resumiu:
Industry must not get too far ahead of agriculture. Basic facilities in transportation, power, water supply, etc. - the so called social overhead capital - must be supplied in adequate volume to support and stimulate the growth of industry. … Therefore, it is argued, to make development possible it is necessary to start, at one and the same time, a large number of new industries which will be each others’ clients through the purchases of their workers, employers, and owners. For this reason, the theory [was called the] theory of the ‘big push’. But such a process is given up as hopeless by the balanced growth theory which finds it difficult to visualize how the ‘underdevelopment equilibrium’ can be broken into at any one point. The argument is reminiscent of the paradox about the string that is equally strong everywhere and that therefore when pulled cannot break anywhere first: it either will not break at all or must give way everywhere at once. However, as Montaigne pointed out in considering this paradox, its premise ‘is contrary to nature’ for ‘nothing is ever encountered by us that does not hold some difference however small it may be’ (Albert Hirschman, 1959, pp. 51-52).
[A indústria não deve se adiantar muito à agricultura. As instalações básicas de transporte, energia, abastecimento de água, etc. – o chamado capital social indireto – devem ser fornecidas em volume adequado para apoiar e estimular o crescimento da indústria. … Portanto, argumenta-se que, para tornar o desenvolvimento possível, é necessário iniciar, ao mesmo tempo, um grande número de novas indústrias que serão clientes umas das outras por meio das compras de seus trabalhadores, empregadores e proprietários. Por essa razão, a teoria [foi chamada de] teoria do “grande empurrão”. Mas tal processo é considerado sem esperança pela teoria do crescimento equilibrado, que tem dificuldade em visualizar como o “equilíbrio do subdesenvolvimento” pode ser rompido em qualquer ponto. O argumento lembra o paradoxo sobre a corda que é igualmente forte em todos os lugares e que, portanto, quando puxada, não pode se romper em nenhum lugar primeiro: ela ou não se romperá de forma alguma ou deverá ceder em todos os lugares ao mesmo tempo. No entanto, como Montaigne salientou ao considerar este paradoxo, a sua premissa “é contrária à natureza”, pois “nada é jamais encontrado por nós que não contenha alguma diferença, por menor que seja.”]
Ironicamente, para Hirschman, essa baseava sua análise de diferenciação radical entre, por exemplo, duas unidades econômicas autárquicas e fechadas em si mesmas e, pois, não comunicantes - uma ‘moderna’ e uma ‘tradicional’ - nas distorções criadas pela colonização imperial:
… the balanced growth theory reaches the conclusion that an entirely new, self-contained modern industrial economy must be superimposed on the stagnant and equally self contained traditional sector. Say’s Law is here made to reign independently in both economies. This is not growth, it is not even the grafting of something new onto something old; it is a perfectly dualistic pattern of development, akin to what is known to child psychologists as “parallel play.” There are indeed instances of this kind of development, but they are usually considered conspicuous failures from both the social and economic points of view: the contrast between the Indian communities of the Peruvian altiplano and the Spanish mestizo economy along the coast comes to mind and so do the much decried enclave-type plantations and mining operations that have been set up in several underdeveloped countries by foreign concerns as perfectly self-contained units, far away from the danger of contamination by the local economy (Albert Hirschman, 1959, p. 52).
[A teoria do crescimento equilibrado chega à conclusão de que uma economia industrial moderna inteiramente nova e autocontida deve ser sobreposta ao setor tradicional estagnado e igualmente autocontido. A Lei de Say é aqui imposta independentemente em ambas as economias. Isso não é crescimento, nem mesmo a inserção de algo novo em algo antigo; é um padrão de desenvolvimento perfeitamente dualista, semelhante ao que os psicólogos infantis conhecem como "jogo paralelo". De fato, existem exemplos desse tipo de desenvolvimento, mas geralmente são considerados falhas flagrantes tanto do ponto de vista social quanto econômico: o contraste entre as comunidades indígenas do altiplano peruano e a economia mestiça espanhola ao longo da costa vem à mente, assim como as tão criticadas plantações e operações de mineração do tipo enclave que foram estabelecidas em vários países subdesenvolvidos por empresas estrangeiras como unidades perfeitamente autocontidas, longe do perigo de contaminação pela economia local.]
O sistema-mundo que ligava colônias e metrópoles não foi premeditado como uma forma de desenvolver as regiões conquistadas. Isso tornara-se evidente pela criação de espaços especializados dedicados a commodities exportáveis, que não precisavam de qualquer contato com os modos de vida pré-existentes para subsistir. Celso Furtado, por exemplo, demonstraria no clássico Formação Econômica do Brasil (1958) durante seu pós-doutoramento na Universidade de Cambridge, que um problema de longo prazo que a antiga colônia portuguesa enfrentava para desenvolver-se industrialmente era a falta de ‘acumulação primitiva de capital’, porque o dinheiro gerado nas unidades econômicas da agricultura de exportação não circulava no território brasileiro: as moendas de cana eram montadas com empréstimos holandeses, com peças fabricadas em Lisboa ou em Amsterdam; escravos e animais eram usados na produção, não recebendo salários; e senhores de engenho não viam qualquer necessidade de comprar os bens de luxo que preenchiam sua conspícua ociosidade nas vilas ascendentes ao seu redor, preferindo importá-los diretamente do Velho Mundo. A moeda, assim, ia embora quase na mesma medida com que era produzido. Não havia quase nenhum ‘efeito multiplicador’ ou transmissão dessa forma de economia capitalista planejada que integrasse as diferentes regiões do Brasil: as plantations não se falavam; a Cidade e o Campo estavam separados por uma barreira de interesses inexpugnável.
Mas Hirschman lembra seus leitores, logo em seguida, que o desenvolvimento não precisa se dar assim. Citando diretamente Perroux, ele diz que os “polos de crescimento” podem induzir investimentos subsequentes a partir de uma “cadeia de desequilíbrios” (a “chain of disequilibria”, Albert Hirschman, 1958, p. 65). A abordagem do crescimento equilibrado era absurda porque
“it combines a defeatist attitude toward the capabilities of underdeveloped economies with completely unrealistic expectations about their creative abilities. On the one hand, the conception of the traditional economy as a closed circle dismisses the abundant historical evidence about the piecemeal penetration by industry that competes successfully with local handicraft and by new products which are first imported and then manufactured locally. It also disregards the evidence that, for better or for worse, some products of modern industrial civilization - flashlights, radios, bicycles, or beer - are always found sufficiently attractive to make people stop hoarding, restrict traditional consumption, work harder, or produce more for the market in order to acquire them. But, on the other hand, a people that is assumed to be unable to do any of these things and that is therefore entirely uninterested in change and satisfied with its lot is then expected to marshal sufficient entrepreneurial and managerial ability to set up at the same time a whole flock of industries that are going to take in each others’ output! For this is of course the major bone that I have to pick with the balanced growth theory: its application requires huge amounts of precisely those abilities which we have identified as likely to be in very limited supply in underdeveloped countries. … In other words, if a country were ready to apply the doctrine of balanced growth, then it would not be underdeveloped in the first place. … if ten projects could be undertaken jointly, lending each other mutual support in demand, any one of them would be more profitable than the same project undertaken in isolation. On the premises stated, this is undoubtedly correct. But it is also true that a country cannot undertake any number of projects just because they would turn out to be profitable if it undertook them (Albert Hirschman, 1958, pp. 53-55).
[ela combina uma atitude derrotista em relação às capacidades das economias subdesenvolvidas com expectativas completamente irrealistas sobre suas habilidades criativas. Por um lado, a concepção da economia tradicional como um círculo fechado descarta as abundantes evidências históricas sobre a penetração gradual da indústria, que compete com sucesso com o artesanato local, e de novos produtos que são primeiro importados e depois fabricados localmente. Também desconsidera a evidência de que, para o bem ou para o mal, alguns produtos da civilização industrial moderna – lanternas, rádios, bicicletas ou cerveja – são sempre considerados suficientemente atraentes para fazer as pessoas pararem de acumular, restringirem o consumo tradicional, trabalharem mais ou produzirem mais para o mercado a fim de adquiri-los. Mas, por outro lado, espera-se que um povo que se supõe incapaz de fazer qualquer uma dessas coisas e que, portanto, é totalmente desinteressado em mudanças e satisfeito com sua sorte, reúna capacidade empreendedora e gerencial suficiente para criar, ao mesmo tempo, um bando de indústrias que absorverão a produção umas das outras! Pois este é, naturalmente, o principal problema que tenho com a teoria do crescimento equilibrado: a sua aplicação requer enormes quantidades precisamente daquelas capacidades que identificámos como sendo provavelmente de oferta muito limitada nos países subdesenvolvidos. … Por outras palavras, se um país estivesse pronto para aplicar a doutrina do crescimento equilibrado, então não seria subdesenvolvido em primeiro lugar. … Se dez projetos pudessem ser empreendidos em conjunto, emprestando um ao outro apoio mútuo na procura, qualquer um deles seria mais lucrativo do que o mesmo projeto empreendido isoladamente. Pelas premissas apresentadas, isto está indubitavelmente correto. Mas também é verdade que um país não pode empreender qualquer número de projetos apenas porque estes se revelariam lucrativos se os empreendesse.]
O problema como um todo residia numa perspectiva filosófica falha a respeito do significado do desenvolvimento:
development means transformation rather than creation ex novo: it brings disruption of traditional ways of living, of producing, and of doing things, in the course of which there have always been many losses; old skills become obsolete, old trades are ruined, city slums mushroom, crime and suicide multiply, etc., etc. And to these social costs many others must be added, from air pollution to unemployment … (Albert Hirschman, 1958, p. 56).
[desenvolvimento significa transformação em vez de criação ex novo: ele traz consigo a ruptura dos modos tradicionais de viver, de produzir e de fazer as coisas, no decurso dos quais sempre houve muitas perdas; as antigas competências tornam-se obsoletas, os antigos ofícios são arruinados, as favelas urbanas proliferam, o crime e o suicídio multiplicam-se, etc., etc. E a estes custos sociais devem ser acrescentados muitos outros, desde a poluição atmosférica ao desemprego …]
Mesmo em variantes mais refinadas da doutrina, que deduz da constatação que “atomistic private producers cannot appropriate the external economies to which their activity gives rise” (produtores privados atomísticos não podem apropriar-se das economias externas às quais a sua atividade dá origem) que, portanto, todo o investimento precisaria ser “centrally planned”, o problema persiste:
Assumption of responsibility by the state in the economic field has most frequently been urged not to provide more impetus to development through the adding up of all the gains, but to introduce some of the social costs into the economic calculus and thus to temper the ruthlessness and destructiveness of capitalist development. Presumably the advocates of this course thought that some sacrifice in the speed of the process of creative destruction would be well worth while if it could be made a bit less destructive of material cultural, and spiritual values. And, admittedly, a major difficulty to the speedy industrialization of today’s underdeveloped countries consists precisely in the fact that they are not prepared to incur those social costs that were so spectacularly associated with the process during the early nineteenth century in Western Europe. They are forcing their young entrepreneurial class (as well as their taxpayers in general) to internalize a good portion of these costs through advanced social security, minimum wage, and collective bargaining legislation, through subsidized low-cost housing and similar “welfare state” measures (Albert Hirschman, 1958, p. 57).
[A assunção de responsabilidade pelo Estado no campo econômico tem sido frequentemente defendida não para dar mais ímpeto ao desenvolvimento por meio da soma de todos os ganhos, mas para introduzir alguns dos custos sociais no cálculo econômico e, assim, moderar a crueldade e a destrutividade do desenvolvimento capitalista. Presumivelmente, os defensores dessa abordagem acreditavam que algum sacrifício na velocidade do processo de destruição criativa valeria a pena se pudesse ser um pouco menos destrutivo para os valores materiais, culturais e espirituais. E, reconhecidamente, uma grande dificuldade para a rápida industrialização dos países subdesenvolvidos de hoje consiste precisamente no fato de que eles não estão preparados para incorrer nos custos sociais que foram tão espetacularmente associados ao processo durante o início do século XIX na Europa Ocidental. Eles estão forçando sua jovem classe empresarial (assim como seus contribuintes em geral) a internalizar boa parte desses custos por meio de legislação avançada de seguridade social, salário mínimo e negociação coletiva, por meio de moradias populares subsidiadas e medidas semelhantes de “estado de bem-estar social.”]
Nesse parágrafo, Hirschman põe em dúvida a validade e a utilidade da tese da internalização absoluta pelo Estado, e sua proposta para o desenvolvimento, baseado na ideia de “unbalanced growth”, compartilha grandes semelhanças com a advogada por Perroux desde os anos 30, que o francês denomina de “estratégia de (re-)organização dos mercados”. Hirschman enfatiza que
… nonmarket forces are not necessarily less “automatic” than market forces (Albert Hirschman, 1958, p. 63.
[… forças outras que não as de mercado não são necessariamente menos “automáticas” do que as forças ditas de mercado.]
Para ele, a visão sobre ‘mecanismos de correção’ ou de ‘ajuste’ dos desequilíbrios de preços relativos criados pelo processo de desenvolvimento que veio a dominar a literatura sofria de excessiva estreiteza. A “monotonous regularity” (regularidade monótona) com a qual autoridades intervêm por pressão pública sempre que forças de mercado mostraram-se falhas em adereçar problemas econômicos percebidos pelos que mais sofrem com eles seria prova que
we do not have to rely exclusively on price signals and profit-maximizers to save us from trouble (Albert Hirschman, 1958, p. 64).
[não precisamos depender exclusivamente da sinalização de preços e de maximizadores de lucro para nos salvar de perigos.]
Tanto os mercados como o Estado são, para Hirschman, valiosos meios de correção potencial dos desequilíbrios do desenvolvimento. Para ele, a ideia de que é preciso haver seja um planejamento perfeito para que o desenvolvimento deslanche, ou de mercados perfeitos para que ele seja possível, é “not only impractical but also un economical” (não só impraticável mas anti-econômica). Para ele, é claro que não é necessário que todos os desequilíbrios sejam corrigidos, principalmente porque, muitas vezes, eles podem ser a prova viva de que o processo de “desenvolvimento” implementado efetivamente por um governo, uma junta ou uma elite é desumano e ignora as vontades das pessoas a ele sujeitas:
But if a community cannot generate the “induced” decisions and actions needed to deal with the supply disequilibria that arise in the course of uneven growth, then I can see little reason for believing that it will be able to take the set of “autonomous” decisions required by balanced growth. In other words, if the adjustment mechanism breaks down altogether, this is a sign that the community rejects economic growth as an overriding objective (Albert Hirschman, 1958, p. 64).
[Mas se uma comunidade não consegue gerar as decisões e ações “induzidas” necessárias para lidar com os desequilíbrios de oferta que surgem no curso de um crescimento desigual, então vejo pouca razão para acreditar que ela será capaz de tomar o conjunto de decisões “autônomas” necessárias para um crescimento equilibrado. Em outras palavras, se o mecanismo de ajuste falhar completamente, isso é um sinal de que a comunidade particular rejeita o crescimento econômico como um objetivo primordial.]
O desenvolvimento não pode (ou melhor, não deve) ser imposto seja por burocratas ou por empresários. A razão primordial para isso é que não há como definir “necessidades universais” (senão, talvez, as mais básicas de todas como pão e água) para justificar tal imposição: toda necessidade percebida é produzida histórica e culturalmente, e portanto prescinde da experiência, dos valores, das crenças e das percepções de seres humanos - não agentes hipotéticos, utilitários, racionais e ‘maximizadores’ - cuja existência é constituída por heranças linguísticas, ritualísticas e relacionais a partir das quais cada um constrói sua compreensão de si. Em um livro de 1963, Journeys Toward Progress, Hirschman ecoaria Adam Smith e outros iluministas escoceses, atribuindo a causa dessa ansiedade para exigir dos outros que adotem hábitos e consumos mais ‘racionais’ de acordo com os ‘interesses próprios que deveriam ser capazes de compreender’ como uma dificuldade de se enxergar as lentas transformações de ‘preferências’ - muitas das quais surgem sem que pudéssemos prevê-las - que ocorrem em um ritmo e em uma escala de tempo alheios às nossas percepções presentistas e descontextualizadas, incapazes de captar as nuances da consciência de pessoas que viveram circunstâncias incompreensíveis para pessoas não familiarizadas com elas. Por exemplo, Hirschman diz que
It may appear strange that large masses of men should elect to live in an area where they know they will be exposed to complete loss of livelihood several times in their lifetime. Brazilian writers have explained the puzzle by opposing the risky but free life of the sertão to the oppressively organized life on the coastal sugar plantations, with its many reminders of the not-so-defunct slavery (Albert Hirschman, 1963, p. 35).
[Pode parecer estranho que grandes massas de homens optem por viver em uma área onde sabem que estarão expostos à perda total de seus meios de subsistência várias vezes ao longo da vida. Escritores brasileiros explicaram o enigma opondo a vida arriscada, mas livre, do sertão à vida opressivamente organizada nas plantações de açúcar costeiras, com seus muitos vestígios da escravidão não tão extinta.]
Citando Thorstein Veblen, Hirschman relembra que os seres humanos funcionam com base em uma ‘vontade arrastada’, reminiscente das vontades de sua comunidade formativa. Ao contrário da ideia comumente difundida de que “a necessidade” seria a “mãe de todas as criações” o Capitalismo já teria nos dado prova suficiente de que é “a invenção a mãe da necessidade” (Albert Hirschman, 1963, p. 68). Essa citação revela a ausência de uma visão unidimensional de desenvolvimento em Hirschman, pois todas as compulsões nocivas do consumismo podem assim ser mais criticáveis como distorções do desenvolvimento. Essa consciência cultural de Hirschman é explicitada por uma de suas citações nas notas de rodapé:
The fulfillment of one need establishes conditions out of which others emerge … In most instances it is impossible for people to foresee [these emergent wants] even if they try … Entrained wants are a consistent feature of motivational stresses for cultural change (Barnett, 1953, p. 148).
[A satisfação de uma necessidade estabelece condições a partir das quais outras emergem… Na maioria dos casos, é impossível para as pessoas preverem [esses desejos emergentes], mesmo que tentem… Desejos arraigados são uma característica consistente das tensões motivacionais para a mudança cultural.]
Por fim, resta notar que em Hirschman uma das razões para, geralmente, preferir-se nos países subdesenvolvidos estratégias como a do crescimento balanceado é a dupla pressão geopolítica e interna de “sociedades atrasadas” (‘latecomer societies’) de
… attack a variety of problems regardless of whether their resources, abilities and attitudes are in harmony with the tasks they are undertaking. Perhaps we can place into this category most of today’s underdeveloped countries with their ‘revolution of expectations’ and their compulsive desire to solve all problems of economic, social, and political backwardness as rapidly as possible. In this case, the lag of understanding behind motivation is likely to make for a high incidence of mistakes and failures in problem-solving activities and hence for a far more frustrating path to development than the one that characterizes the industrial leaders (Albert Hirschman, 1963, p. 312).
[… solucionar uma variedade de problemas, independentemente de seus recursos, habilidades e atitudes estarem em harmonia com as tarefas que estão realizando. Talvez possamos enquadrar nessa categoria a maioria dos países subdesenvolvidos de hoje, com sua "revolução de expectativas" e seu desejo compulsivo de resolver todos os problemas de atraso econômico, social e político o mais rápido possível. Nesse caso, a defasagem entre compreensão e motivação provavelmente resultará em uma alta incidência de erros e fracassos nas atividades de resolução de problemas e, portanto, em um caminho para o desenvolvimento muito mais frustrante do que aquele que caracteriza os líderes industriais.]
Parte dessa ansiedade advém da deterioração sistemática dos termos de troca entre países em patamares diferentes de PIB, um dos diagnósticos - mais tarde fundamental para teorias de Centro-Periferia e para a escola desenvolvimentista latino-americana - mais inovadores de Perroux para sua época.
2.2 A influência da “Escola Austríaca”
Na Alemanha, Perroux estudou com alguns dos principais economistas da Escola Histórica Alemã, como Werner Sombart, e filósofos políticos como Carl Schmitt. Não tenho base textual o suficiente para digressar sobre a influência de qualquer um desses dois no pensamento de Perroux, e portanto irei me atentar à sua passagem pela Áustria. Isso porque 30 anos mais tarde o autor ainda faria referência aos dilemas existenciais que a ciência econômica atravessaria no Reino do Leste. Os pupilos de Carl Menger, Eugen von Böhm-Bawerk e Friedrich von Wieser na Cidade da Música não só poriam em dúvida a cientificidade da teoria neoclássica, mas tentariam pôr em xeque as pretensões tecnocráticas dos economistas neoclássicos. Tal como a queda do grande Império Austro-Húngaro levantou uma nuvem de poeira assoprada que foi suspensa como um espectro a pairar por toda a Europa, em silvos suaves que pareciam anunciar que a Era dos Impérios dava lugar à Era dos Estados-Nação, a melancolia dos intelectuais austríacos se dispersara mundo afora, impondo um grande fardo aos novos rumos que a economia iria tomar terminadas as grandes guerras. Quem tem os ouvidos do coração inclinados para bem pertinho da vista facilmente nota na prosa de Perroux o som de um assobio, sibilando levemente por entre seus lábios enquanto maneja a máquina datilográfica, trinando contumaz e desapercebido a mesma melodia chorosa dos céticos vienenses, que bufavam de temor e de resignação mesmo mantendo a pose rija de “defensores da Civilização Liberal” (recomendo o belíssimo livro de Erwin Dekker sobre o assunto, The Viennese Students of Civilization: The Meaning and Context of Austrian Economics Reconsidered, ao qual dedicarei uma resenha neste substack futuramente).
Na Áustria, Perroux fez parte do prestigioso círculo de Ludwig Von Mises e assistiu às aulas de Sigmund Freud. Se a liberdade imaginativa e a licença prosaica me permitem falar outra linguagem senão aquela própria ao historiador, eu diria que provavelmente Perroux assistisse distraído aos solilóquios públicos dos dois grandes mestres. Digo isso não só porque, nos anos 30, Mises ainda estava polindo sua arte na casmurrice - é fácil concluir que, para isso, precisava praticar constantemente - e ninguém melhor do que jovens estrangeiros recém-formados para destratar com seus arroubos de ira - só assim Mises conseguiria, uma década mais tarde, se tornar oficialmente (mais) um dos membros constrangedores da Mont Pèlerin Society, ao romper com o burburinho elegante que emergia das discussões por entre risos e incredulidades mútuas que Milton Friedman, Friedrich von Hayek, Fritz Machlup, George Stigler e Lionel Robbins promoviam durante o jantar, tendo proferido em alto e bom som enquanto caminhava a passos apressados e barulhentos em direção à porta: “vocês são todos um bando de socialistas!”; nem digo isso porque o pai da psicanálise, em 1934, há muito deixara de regar a flor de sua idade, tendo, à época, dedicado suas energias para melhor explicar como, metaforicamente, a metástase que se espalhava de sua boca para o peito havia 10 anos - e contra a qual lutava pertinaz com tantas cirurgias quanto charutos - refletia o mal-estar da Civilização, tão inelutável que nem as orações mais honestas do homo religiosus poderiam aplainar, assunto que deveria trazer grande desconforto a um jovem católico profundamente devoto como Perroux.
Não, a razão pela qual menciono a possível distração é outra, mais cômica, razão essa proveniente de uma mente - a minha - que não tem, até aqui neste texto, nenhum compromisso com a veracidade dos fatos: aludo aqui à distração que um homem precisa ter caso queira preservar sua dignidade quando tendo encontrado seu grande amor, por infortúnios e imprevistos da vida teve de contentar-se com aquelas outras amantes que consentiram fazer-lhe amor… Joseph Schumpeter, outro grande economista formado em Direito e uma das referências mais contínuas na Obra de Perroux, já desde 1932, lecionava em Harvard. Tendo tentado por várias outras vezes conhecê-lo, o encontro entre os dois só se daria décadas mais tarde, quando o renomado autor da inovação disruptiva e da destruição criativa enviaria um convite co-autorado por Edward Chamberlin, por quem Perroux também nutria uma admiração transatlântica, para que o francês apresentasse sua tese dos ‘polos de crescimento’ em uma palestra nos Estados Unidos.
Prova disso é que Perroux, pouco tempo depois, escreveria a introdução à edição francesa da Teoria do Desenvolvimento Econômico (originalmente publicado como Theorie der wirtschaftlichen Entwicklung em 1911) de Schumpeter. Mas ainda que seja razoável, portanto, elucubrar que Perroux tivesse preferido encontrar Schumpeter, seu tempo em Viena não foi em vão. O interesse freudiano pela ‘psicologia das multidões’ não passou despercebido ao economista francês, que viria, como iremos ver, definir ‘desenvolvimento econômico’ como um processo dependente de mudanças ‘mentais e espirituais’ em um povo. Desses dois encontros, todavia, Freud parece ter deixado menos marcas impressas na Obra de Perroux (a bem da verdade, o livro mencionado anteriormente, Alienação e Sociedade Industrial, já da década de 70, abunda em referências a Freud), que pouco antes de servir na chamada ‘missão francesa’ de acadêmicos que viriam fundar a Universidade de São Paulo (USP), escreveu o prefácio à edição francesa de O Socialismo de 1935, de Mises (originalmente publicado em 1922 como Die Gemeinwirtschaft: Untersuchungen Über Den Sozialismus), livro-estopim do Economic Calculation Problem (também conhecido como Socialist Calculation Debate).
A principal lição que Perroux tirou de seus jantares e cantorias com o Círculo Mises no restaurante Gruener Anker foi que seria uma questão de impossibilidade técnica por princípio - e, portanto, não solucionável nem pelo maior computador do mundo munido de um GPT∞ - o Estado controlar todos os modos de produção e de distribuição de uma economia determinando seus preços relativos, independentemente do que concluíssem os modelos estáticos de equilíbrio perfeito de Oskar Ryszard Lange, Fred Manville Taylor e Abba Ptachya Lerner que teriam comprovado a possibilidade teórica de funcionamento do ‘socialismo de mercado’ - coeteris paribus, evidentemente.
Os ‘neoclássicos socialistas’ notariam, com certa dose de ironia, que ninguém teria contribuído mais para o desenvolvimento de suas teses do que Mises. Os desafios que o austríaco apresentou à possibilidade de determinar-se preços numa economia onde todos os meios de produção fossem coletivizados pelo Estado foram tratados como joguetes extremamente estimulantes, despertando-se uma verdadeira competição entre economistas acadêmicos: quem encontraria a solução matemática mais elegante e simples para o economic calculation problem? Lange e Taylor chegaram ao ponto de dizer que Mises não deveria ser visto como pai do Neo-Libertarianismo - ora abraçado por finance bros como Javier Milei, que tentam fazer do Estado o maior billboard do mundo, chegando ao ponto de propagandear criptomoedas com o Twitter oficial do governo em vez do Peso Argentino, seu principal instrumento de Soberania. Nada disso! Mises deveria ser visto como um dos patriarcas do Socialismo Científico por seu papel pioneiro na transformação do sonho inominável de Marx em blueprints:
“A statue of Professor Mises ought to occupy an honorable place in the great hall of the Ministry of Socialization or of the Central Planning Board of the socialist state” (Lange and Taylor, 1964, pp. 57-58).
[Uma estátua do Professor Mises deveria ocupar um lugar de honra no grande salão do Ministério da Socialização ou do Conselho Central de Planejamento do estado socialista.]
Perroux, contudo, manteve-se ao lado de céticos como Don Lavoie. Em 1985, Lavoie publicou uma revisão histórica dos rumos tomados pelo debate (Rivalry and Central Planning: The Socialist Calculation Debate Reconsidered). Nela, o professor da George Mason University explorou amplamente a Obra Marxiana para então, com demasiada segurança, levantar a dúvida: será que Mises e Hayek foram mesmo respondidos pelo modelo matemático de equilíbrio geral proposto pelos ‘socialistas de mercado’? Ou será, como é mais comum na história das grandes controvérsias, que se pegássemos as proposições introdutórias e então lêssemos em seguida as conclusões que a ciência econômica consagrara, não estaríamos defronte um escancarado non sequitur?
O ponto de Don Lavoie pode ser resumido assim: não bastasse, como todos bem sabem, que economistas fossem incompreensíveis para a maioria das pessoas normais; não bastasse, Deus nos acuda, essa “truth universally acknowledged” - roubando aqui, na cara dura, a frase de abertura de Pride & Prejudice (1813) de Jane Austen - que “em conversas sobre Economia” não é mais que uma questão de tempo até “que ninguém mais saiba do que se está falando”, como bem diz Michel Houellebecq em Serotonina (2019); não, para piorar tudo, não só o conteúdo e a forma parecem incompreensíveis para outsiders como também o são para os próprios praticantes da área! Diferentes Escolas de Economia podem, muito bem, falar línguas diferentes e não se compreenderem umas às outras:
“The fact that the neoclassical interpreters of the calculation debate shared [an] essential analytic background only with the economists on one side of the debate may be sufficient reason to suspect that the other side has yet to have been adequately understood. Differences between the neoclassical and Austrian interpretation of such key concepts as “economic theory”, “efficiency”, “ownership”, and “price” led the neoclassical chroniclers of the debate to consistently misinterpret the arguments that the Austrian economists were trying to make, and to do so in remarkably similar ways” (Don Lavoie, 1985, p. 3).
[O fato de os intérpretes neoclássicos do debate sobre o cálculo compartilharem [uma] base analítica essencial apenas com os economistas de um lado do debate pode ser razão suficiente para suspeitar que o outro lado ainda não tenha sido adequadamente compreendido. As diferenças entre a interpretação neoclássica e austríaca de conceitos-chave como “teoria econômica”, “eficiência”, “propriedade” e “preço” levaram os cronistas neoclássicos do debate a interpretar sistematicamente de forma equivocada os argumentos que os economistas austríacos tentavam apresentar, e a fazê-lo de maneiras notavelmente semelhantes.]
Mas Perroux era poliglota! Tendo aprendido com ambos os lados, o economista francês tentou - aos trancos e barrancos, admitidamente - ultrapassar a microeconomia neoclássica como um todo, negando-lhe o status de verdadeiro método científico do comportamento humano. Em uma de suas asserções mais ousadas, Perroux asseverou rispidamente: “a ciência econômica ainda não domina nem a noção nem a teoria da concorrência” (Perroux, 1964, p. 96). Não é de se surpreender, portanto, que na mesma seção, Perroux tenha dado os parabéns a Friedrich Hayek por ter apresentado a todos os seus colegas de profissão um grande dilema:
Et qui ne sent la difficulté où nous introduit F. Hayek quand il distingue entre l’ordre concurrentiel (competitive order) qui « fait fonctionner la concurrence » et la concurrence ordonnée ou organisée (the so-called ordered competition), qui, presque toujours, tend à restreindre le caractère effectif (effectiveness) de la concurrence? (François Perroux, 1964, p. 96).
[E quem não sente a dificuldade que F. Hayek nos introduz quando distingue entre a ordem concorrencial (competitive order) que “faz funcionar a concorrência” e a concorrência ordenada ou organizada (the so-called ordered competition), que quase sempre tende a restringir o carácter efetivo (effectiveness) da concorrência?]
Em seu calhamaço de 800 páginas, L’Économie du XXème Siècle (1961), Perroux teceu uma grandiloquente crítica à cegueira provocada pelas lentes da análise estática que, ao olhar para o Desenvolvimento Econômico como uma série de capturas fotográficas, abriria mão de enxergar aquilo que modelos dinâmicos seriam capazes de compreender: as desigualdades inerentes a todo processo de transformação econômica, aspecto caríssimo às teses da Escola Austríaca:
Il faut, sur ce point, donner entièrement raison à F. Hayek quand il écrit: « La concurrence est par nature un processus dynamique dont les caractéristiques essentielles sont éliminées par les suppositions qui sous-tendent l’analyse statique. » Ou encore: « Elle est un processus qui implique un continuel changement dans les données et dont la signification, par conséquent, doit être nécessairement manquée par une théorie qui traite ces données comme constantes” (Perroux, 1964, p. 106).
[É preciso, sobre este ponto, concordar integralmente com F. Hayek quando este escreveu: “A concorrência é por natureza um processo dinâmico cujas características essenciais são eliminadas pelas suposições que fundamentam a análise estática.” Ou melhor: “Ela é um processo que implica uma transformação contínua dos ‘dados’ do modelo, cujo significado, portanto, deve necessariamente ser mal compreendido por uma teoria que os trata como constantes.”]
Mas a sua solução difere da de Mises, porque Perroux não exclui totalmente a participação do Estado no processo de formação de preços (nacionais ou internacionais). No livro há pouco citado, cujos ensaios foram escritos no imediato pós-guerra e contêm um vasto acervo de críticas à formação da União Europeia e ao Plano Marshall, Perroux esforça-se para formalizar suas teorias, propondo um modelo próprio de (des)equilíbrio dinâmico; esforço incompleto que lhe gerara muita frustração - nesse sentido, sua autoconsciência crítica deveria levá-lo a concordar com comentadores atuais, que deixaram de se inspirar nele por considerarem sua abordagem como “too fuzzy to be characterized”. Mesmo tendo se cercado de matemáticos competentes para desenvolver seu trabalho - o que explica a mudança do nome do Institut de Science Économique Appliquée (ISEA), por ele fundado em 1944, para Institut de Sciences Mathématiques et Économiques Appliquées (ISMÉA) - a modelização e a aplicabilidade de suas teses mais revolucionárias não veio a tempo, pois quando publicou Unités Actives et Mathématiques Nouvelles: révision de la théorie de l’équilibre économique général (Unidades Ativas e Matemáticas Novas: revisão da teoria do equilíbrio econômico geral), em 1975, outros, como Albert Hirschman, já haviam construído sobre seus alicerces e ganhado a atenção de governos e de departamentos de economia ao redor do globo.
Antes, contudo, de prosseguirmos nessa breve história de antecedentes intelectuais à teoria de desenvolvimento de Perroux, cujos pressupostos básicos foram apresentados aqui, é preciso mencionar o que, mais precisamente, o francês herdou de Schumpeter. Ainda na parte introdutória de seu livro, podemos ter uma noção melhor:
“L’effet de domination ne peut pas être « tiré » logiquement des prémisses rigoureusement exprimées de l’équilibre général formulé à partir des conditions de l’interdépendance générale et réciproque … Une dynamique complète peut être tirée de l’effet de domination. Le jour où elle serait entièrement élaborée, elle mériterait peut-être le nom de dynamique de l’inégalité, comme la dynamique de J. Schumpeter pourrait s’appeler dynamique de la nouveauté. Tandis que celle-ci oppose les mécanismes de l’innovation à ceux de la routine, celle-là opposerait les mécanismes de la domination à ceux du contrat sans combat” (Perroux, 1964, p. 36).
[O efeito de dominação não pode ser logicamente "extraído" das premissas rigorosamente expressas de equilíbrio geral formuladas a partir das condições de interdependência geral e recíproca ... Uma dinâmica completa pode ser extraída do efeito de dominação. No dia em que estiver completamente desenvolvida, talvez mereça o nome de dinâmica da desigualdade, assim como a dinâmica de J. Schumpeter poderia ser chamada de dinâmica da novidade. Enquanto este opõe os mecanismos de inovação aos da rotina, aquele oporia os mecanismos de dominação aos do contrato sem combate.]
A Teoria de Desenvolvimento de Schumpeter enfatizou, precisamente, os efeitos disruptivos do processo de inovação no Capitalismo. Ao contrário das teses desenvolvidas principalmente por economistas norte-americanos e que ficaram conhecidas como “Crescimento Balanceado” ou “Crescimento Equilibrado”, Schumpeter não poderia ser mais claro: o crescimento econômico é, em si mesmo, um fenômeno desequilibrador, ele perturba o que estava, até então, estabelecido, ele gera incertezas na mesma medida em que abre caminhos antes inconcebíveis, precisamente por interferir com as rotinas, com as expectativas, com o rumo habitual do presente. O crescimento é fruto de mudanças no futuro esperado, mudanças estas que afetam as vidas de todos positiva ou negativamente. Perroux irá notar, contudo, que esse processo não é apenas desequilibrado, mas desigual. É precisamente na desigualdade dos efeitos do crescimento que reside a possibilidade de o crescimento não poder ser necessariamente considerado um “progresso econômico”; é nela que reside a chave para se compreender a concorrência: ela gera a possibilidade onipresente de conflitos no movimento das transformações econômicas.
Tanto a noção schumpeteriana quanto a perrouxiana só podem ser bem entendidas - não só captadas - por modelos dinâmicos que enfatizem precisamente os limites da nossa compreensão a respeito do crescimento econômico devido à imprevisível difusão de informações, ações e ideias que é seu motor, uma vez que “os agentes do crescimento” são indivíduos membros das sociedades cuja matriz produtiva e distributiva está enfrentando alterações. A diferença entre essa concepção de desenvolvimento e as concepções mais famosas da época, não só a nível teórico mas, também, normativo - isto é, refletindo concepções demasiadamente mecânicas e pouco humanas do processo de desenvolvimento - foi muito bem ilustrada por Hirschman na seção anterior.
Bibliography
Albert Hirschman (1959), The Strategy of Economic Development, Yale University Press, New Haven.
_________________(1963), Journeys Toward Progress: Studies of Economic Policy-making in Latin America, Twentieth Century Fund, New York.
Alexandre Mendes Cunha (2021), ‘Third-WayPerspectives on Order in Interwar France: Personalism and the Political Economy of François Perroux’ In Alexandre Mendes Cunha & Carlos Eduardo Suprinyak (eds.), Political Economy and International Order in Interwar Europe, Palgrave Macmillan, Cham, pp. 59-92.
Barnett (1953), Innovation: The Basis of Cultural Change McGraw-Hill, New York.
Condorcet (2012), Political Writings, Cambridge University Press, Cambridge.
Don Lavoie (1985), Rivalry and Central Planning: The Socialist Calculation Debate Reconsidered, Cambridge University Press, Cambridge.
François Perroux (1954), L’Europe Sans Rivages, Presses Universitaires de France, Paris.
_______________ (1964), L’Économie du XXème Siècle, 2nd ed., Presses Universitaires de France, Paris.
_______________ (1967), A Economia do Século XX, 2nd ed., Herder, Lisboa.
_______________ (1970), Aliénation et Société Industrielle, Éditions Gallimard, Paris.
_______________ (1975), Unités Actives et Mathématiques Nouvelles: révision de la théorie de l’équilibre économique général, Dunod, Paris.
Oskar Lange & Fred M. Taylor (1964), On the Economic Theory of Socialism, McGraw-Hill, New York.