Por que, realmente, a Economia seria uma "ciência sombria"? (Introdução)
A influência de Thomas Carlyle nos Estados Unidos, na Ásia e na América Latina
1. Introdução: A influência global de Carlyle
O texto anterior que publiquei, “A Intolerância Epistêmica é Soficida”, era, na realidade, um prelúdio a textos como este. Uma das experiências mais desagradáveis que lidei no Brasil foi ter de me justificar para um professor que ironizou o fato de eu querer fazer um mestrado estudando autores liberais britânicos — “precisamos de mais estudos sobre brancos europeus?”, como falou. Creio que qualquer pessoa que adapte inteiramente seus estudos pessoais às ‘necessidades da moda’ científica carece radicalmente do espírito acadêmico que deveria nortear suas investigações; apenas uma personalidade malformada pode possuir tamanha plasticidade — e se eu já fosse professor, seria cético com qualquer pupilo que me abordasse sem qualquer ambição de ser uma pessoa minimamente autêntica, satisfeito com quaisquer farelos que caíssem da minha escrivaninha. Se temos de ser apenas operários néscios da divisão do trabalho intelectual, trabalhando em nome de uma finalidade completamente extrínseca à educação proveniente da árdua pesquisa diária, que nos substituam logo por AI’s!
Talvez atitudes como essa — não afirmo que ela já tenha se universalizado, nem que ela demonstre qualquer novidade — tenha algo a ver com o completo desconhecimento por essas bandas sobre quem foi Thomas Carlyle, razão pela qual antes de responder à pergunta do título, introduzo-o ao leitor pouco familiar.
Uma rápida pesquisa na Amazon Brasil me indica que apenas um de seus livros foi traduzido recentemente para o Português, uma edição de 2023 de Sobre Heróis: Culto Ao Herói e o Heroico na História. Obra-Prima da prosa vitoriana, o ‘Romantismo’ de Carlyle inebriou toda uma geração global de intelectuais — eis por que mesmo ‘indigenistas’ poderiam, coerentemente, devotar ao menos alguma atenção a ‘brancos europeus’ como esse. Seus livros participaram ativamente da grande migração transnacional que marcou o século XIX. Sartor Resartus (1834), seu romance filosófico mais famoso, foi leitura indispensável para toda uma geração de intelectuais de língua inglesa do longo século. Não só pela elite, todavia! Os livros de Carlyle eram assiduamente devorados por operários britânicos autodidatas — e falaremos de um deles no texto a seguir. Travestido como reflexões de um modista, o romance é construído como uma trama existencialista que reafirma a liberdade absoluta da vontade humana para rejeitar o Mal e, a partir dessa negação, construir significado para a vida, sem qualquer apologética demagógica pela religião. Muitos líderes de movimentos sindicalistas britânicos retirariam dessas passagens a inspiração para o nascimento do famoso Working Class Hero, responsável por liderar politicamente seus companheiros em nome de maior justiça econômica na sociedade industrial.
George Eliot, pseudônimo da brilhante novelista inglesa Mary Ann Evans, notou, uma vez, que o livro alcançou tamanha fama que mesmo aqueles que “menos simpatizavam com as opiniões [de Carlyle]” sempre relembravam a importância que Sartor teria tido “na história de suas próprias mentes.” Até mesmo Paul Gauguin chegou a retratá-lo em um de seus quadros!

Mas Carlyle não foi conhecido apenas por suas proezas literárias,mas também por seu trabalho como historiador e como filósofo/orador político. Dentre obras impactantes, cito aqui seus estudos sobre a Revolução Francesa (1837), sobre Oliver Cromwell (1845) e sobre Frederico II da Prússia (1858). Sua escrita é infundida com um ar iconoclasta, complexo, ao mesmo tempo crítico, insatisfeito com a vida tal como a concebemos no presente, e, ainda assim, capaz de oferecer um prisma que não colapsa facilmente em julgamentos ideológicos apressados e programáticos. Por essas qualidades, a despeito dos tantos defeitos que eu pessoalmente apontaria em seus raciocínios éticos, Carlyle ajudou a dar um novo fôlego para a principal geração reformista dos Estados Unidos — os chamados transcendentalistas, muitos dos quais, é de conhecimento geral, formularam as primeiras doutrinas de resistência pacífica ou ‘não-obediência’ que viriam, mais tarde, inspirar Dr. Martin Luther King e Mahatma Gandhi — e para movimentos nacionalistas ao redor da Europa, da América Latina e mesmo da Ásia! Sem dúvida isso, por si só, já nos iluminaria toda uma avenida de questionamentos a respeito da apropriação de textos estrangeiros e a prática da leitura há dois séculos atrás. Sem perdermos muito tempo, simplesmente por achar o assunto fascinante, trago aqui alguns exemplos.
1.1 A audiência estadunidense
Alguns comentários sobre os primeiros exemplares de Carlyle a desembarcar na ‘Terra da Liberdade’ falam por si próprios, citados pelo historiador Leon Jackson, em 1999:1
I much question if Christopher Columbus was more transported by the discovery of America, than I was in entering the new realm which this book opened to me. … It became a sort of touch-stone with me. If a man had read Sartor and enjoyed it, I was his friend; if not, we were strangers. — Pastor Metodista William Henry Milburn.
Questiono se Cristóvão Colombo se comoveu mais com a descoberta da América do que eu ao entrar no novo reino que este livro me abriu. … Tornou-se uma espécie de pedra de toque para mim. Se alguém tivesse lido Sartor e gostado, eu era seu amigo; se não, éramos estranhos.
What glorious views of man & life of God & destiny! … What force of language & grandeur of sentiment[,] what deep wisdom & living faith! I could sit forever at the feet of such a teacher! — Frederic Henry Hedge, amigo de Ralph Waldo Emerson.
Que visões gloriosas do homem, da vida, de Deus e do destino! … Que força de linguagem e grandeza de sentimento, que sabedoria profunda e fé viva! Eu poderia sentar-me para sempre aos pés de um mestre assim!
Carlyle’s works are not to be studied - they are not to be re-read - the first impression is the truest and the deepest. If you look again, you will be disappointed and find nothing answering to the mood they have excited. — Henry David Thoreau escreveu em seu jornal.
As obras de Carlyle não devem ser estudadas — não devem ser relidas — a primeira impressão é a mais verdadeira e profunda. Se você olhar novamente, ficará decepcionado e não encontrará nada que corresponda ao clima que elas despertaram.
Em Sartor Resartus, o protagonista atravessa o que Leon denominou de uma “narrativa de conversão”, de um ateísmo desesperado, perdido, para uma regeneração espiritual e resoluta. Era exatamente o que muitos gostariam de ler à época. As intrincadas discussões que Carlyle mascarou por trás das reflexões do protagonista a respeito de suas próprias roupas, tecendo uma “filosofia da moda” — cuja ambição seria um insight amplo sobre a condição humana — não teriam sido, de fato, a parte mais excitante de seus escritos. Como Leon mostra, os capítulos mais entusiasticamente citados à época em que a primeira edição do livro apareceu em Boston compunham uma tríade muito conveniente: “The Everlasting No!” (O Sempiterno Não), “The Centre of Indifference” (O Centro da Indiferença) e “The Everlasting Yea!”:
The reason readers settled on these chapters and read them so affirmatively, I believe, is because they offered a close, but transcendentalized, approximation of what Edmund Morgan has called the traditional Calvinist “morphology of conversion.” Morgan defines a morphology of conversion as a “natural history of conversion ... in which each stage could be distinguished from the next, so that a man could check his eternal condition by a set of temporal and recognizable signs.” Readers of Sartor evidently used Carlyle’s book in just this way, and were thus able to read their own spiritual anxieties and needs into Carlyle’s structural account of the conversion process, as it moved from despair to regeneration. As Frothingham argued, they made “Christian renunciation look attractive as well as obligatory.” (Leon Jackson, 1999, p. 160).
A razão pela qual os leitores se fixaram nesses capítulos e os leram de forma tão afirmativa, creio eu, é porque eles ofereceram uma aproximação contígua, porém transcendentalizada, do que Edmund Morgan chamou de “morfologia da conversão” calvinista tradicional. Morgan define uma morfologia da conversão como uma “história natural da conversão ... na qual cada estágio pode ser distinguido do seguinte, de modo que um homem pode verificar sua condição eterna por um conjunto de sinais temporais e reconhecíveis.” Os leitores de Sartor evidentemente usaram o livro de Carlyle exatamente dessa maneira e, assim, foram capazes de ler suas próprias ansiedades e necessidades espirituais no relato estrutural de Carlyle sobre o processo de conversão, à medida que este se movia do desespero para a regeneração. Como argumentou Frothingham, eles fizeram “a renúncia cristã parecer atraente, além de obrigatória.”
Carlyle foi amplamente compartilhado por jovens estadunidenses que levaram para o fundo de seu peito o tom motivador e rejuvenescedor de sua escrita, capaz de “suavizar a alma e elevar os sentidos,” a partir de uma “apropriação altamente seletiva” que enfatizava pesadamente as emoções suscitadas pelo texto do que sua filosofia política (Leon Jackson, 1999, p. 159). Esse fenômeno é exemplar da plurivocidade inerente à circulação de ideias, nunca facilmente compreendida, tão-só, como demonstração de uma ideologia encerrada e circunscrita em um suposto conteúdo programático hierático.
1.2 A audiência asiática
Esta seção será menor, porque esse tema não me interessa o suficiente para conduzir uma extensa pesquisa sobre a recepção de Carlyle na Ásia. Focarei em um só exemplo, todavia, muito curioso!
Em um livro publicado em 2008, Hiroko Willcock explora a influência que Carlyle teve sobre Uchimura Kanzo, um dos pacifistas japoneses mais famosos da era anterior à Segunda Guerra Mundial e fundador do Nonchurch Movement (Mukyōkai), um grupo evangélico cristão indígena de onde saíram alguns dos maiores intelectuais japoneses da época. Willcock descreve-o como um “Meiji Prophet and Carlylan Man of Letters” (Profeta Meiji e Homem de Letras Carlyleano). Carlyle, foi tanto para Kunzo, e para diversos outros líderes religiosos e intelectuais, como Nitobe Inazo, Uemura Masahisa, Arishima Takeo e Miyake Set'cho, “the greatest preacher of righteousness” (Hiroko Willcock, 2008, p. 26).
Seu foco em autores estrangeiros veio de uma decepção com a produção intelectual japonesa em sua época. Em meio a tanto “desespero, incerteza, insegurança, pobreza” e outras mazelas que marcaram o Japão do século 19, Uchimura abraçou
… the plight of Carlyle’s struggle against poverty, insomnia and isolation, as well as the struggle to find his own faith independent of any denomination, and free from formal, institutionalized, Christianity [to whom thought was the] life-fountain and motive-soul of action (Hiroko Willcock, 2008, p. 27).
… a difícil situação da luta de Carlyle contra a pobreza, a insônia e o isolamento, bem como a luta para encontrar sua própria fé independente de qualquer denominação e livre do cristianismo formal e institucionalizado [para quem o pensamento era a] fonte de vida e a alma motivadora da ação.
Kanzo viria, assim, insipirar-se no retrato que Carlyle pintou com sua máquina de escrever de Oliver Cromwell, tido como um líder que “negligenciava o formalismo e as doutrinas religiosas como opressivas”, enfatizando a liberdade de consciência para todas as formas de adoração. A escrita de Uchimura ficou famosa pelos seus curtos aforismos morais, cuja inspiração estilística foi o estudo de Carlyle sobre a Revolução Francesa. Foi em Sartor Resartus que Uchimura encontrou um
… new gospel of natural supernaturalism ... which elevated man and Nature into the domain of divine that replaced in their primacy the Calvinist God, the Bible, church and saints (Hiroko Willcock, 2008, p. 28)
… novo evangelho do sobrenaturalismo natural ... que elevou o homem e a Natureza ao domínio do divino que substituiu em sua primazia o Deus calvinista, a Bíblia, a igreja e os santos
de onde tirou o tripé fundamental de seu movimento: Natureza, Homem e a Bíblia. Justificando-o como "os elementos essenciais dados à humanidade pelas revelações de Deus, Kanzo não eleva, como Carlyle, “os homens e a história ao patamar divinal”, seguindo, assim, outros autores japoneses da época, como Nakae Toju. Uchimura, assim, bebe da Obra de Carlyle mas mantém um “forte apego à tradição moral e espiritual japonesa”. Seus escritos históricos sobre grandes figuras do Japão seguiram o método de On Heroes, mas deram menos foco à adoração dos heróis. Kanzo trata essas pessoas inspiradoras com muito mais delicadeza e humanidade, vendo-as mais como modelos do que como deuses, e retira de suas reflexões soluções práticas para melhorar a educação moral da nação japonesa, essencial para o florescimento do Estado (Hiroko Willcock, 2008, p. 28-33).
Hiroko nota como sua posição cosmopolita de Uchimira, que estendia seu “pensamento cristão nacionalista” em direção a um novo “conceito de um nacionalismo global, segundo o qual o mundo seria como uma grande nação e o Japão apenas uma parte do todo” foi verdadeiramente profético, indo na contramão do paroquialismo que marcou a ascensão do Estado-Nação, tendo prefigurou o apoio a instrumentos modernos de supranacionalismo (Hiroko Willcock, 2008, p. 37). Que influências ambivalentes um autor como Carlyle que será tratado por tantos pesquisadores atuais como “o pai do Fascismo” pôde ter!
1.3 A audiência latino-americana
Um livro profundamente interessante, e muito pouco discutido até onde sei, que aborda extensivamente a difusão do pensamento de Carlyle na América Latina, chama-se Redentores: Ideas y Poder en América Latina, escrito por Enrique Krauze e publicado em 2011. Krauze apresenta esta influência a partir de uma fórmula que sobeja mediocridade — “Carlyle, el autor precursor del fascismo.” Uma introdução como essas é desestimulante para qualquer leitor sério do século 19, familiar ao elitismo (intelectual e político) que perpassa os livros mesmo de autores como John Ruskin ou Matthew Arnold cujos textos tão facilmente são capazes de inspirar um apreço muito grande pela Justiça Social em sua face redistributiva. Ainda que elementos de semelhança possam ser encontrados entre os regimes de Mussolini e de Hitler e a “Adoração ao Herói” de Carlyle, é sempre preciso tomar mais cuidado com o uso de conceitos que são arraigados de julgamentos morais — “de sentimentalismos”, ainda que válidos em si mesmos, como diria Perroux — para descrever um autor, se ao menos nossa intenção for captar com honestidade seu contexto e sua “performance” discursiva.
Nesse sentido, as citações recolhidas por Krauze falam muito bem por si mesmas; mas não é minha intenção aqui desmerecer o trabalho cuidadoso desse historiador que re-encena todo um fundo cultural complexo, repleto de ambivalências, da América Latina no final de 1800 até o meio do século passado, habilmente apresentando-nos teses cuja relevância atravessou o tempo e parecem mais interessantes hoje do que nunca! Sua história de “redentores” começa com Octavio Paz, que viu no marxismo, quando jovem, um caminho “redentor, heroico, suicida” para a América Latina, e percorreu-o com a alegria afoita de um Tancredi Falconeri; passa, então, por uma reconstrução do cenário ideológico por trás da Teologia da Libertação e dos movimentos indígenas que visavam expurgar a terra do sangue imperialista, redimindo os homens não só pelos males provocados uns aos outros, mas também ao mundo vivo que lhes rodeia; e, por fim, chega aos Hugo Chávez do populismo latinoamericano, sendo ele mesmo descrito como “un líder mediático, un predicador, un redentor por Twitter, un caudillo posmoderno.” Por si só, um estudo dos ideais salvíficos por trás dos idola theatri de nosso continente já me dá a tranquilidade de recomendar a leitura. Falarei mais sobre esse livro em um texto futuro; por agora, vejamos que influência curiosa teve Carlyle nas antigas colônias ibéricas:
La oposición entre el régimen de la democracia y la alta vida del espíritu es una realidad fatal cuando aquel régimen significa el desconocimiento de las desigualdades legítimas y la sustitución de la fe en el heroísmo - en el sentido de Carlyle - por una concepción mecánica de gobierno. Todo lo que en civilización es algo más que un elemento de superioridad material y de prosperidad económica, constituye un relieve que no tarda en ser allanado cuando la autoridad moral pertenece al espíritu de la medianía. — José Enrique Rodó, 1900, um parlamentarista uruguaio de grandes afetos democráticos.
A oposição entre o regime democrático e a vida elevada do espírito é uma realidade fatal quando o primeiro regime significa o desrespeito às desigualdades legítimas e a substituição da fé no heroísmo — no sentido de Carlyle — por uma concepção mecânica de governo. Tudo na civilização que seja mais do que um elemento de superioridade material e prosperidade econômica constitui um alívio que se desfaz rapidamente quando a autoridade moral pertence ao espírito da mediocridade.
O ensaísta cisplatino escreveria, alguns anos mais tarde, um panegírico a Bolívar à maneira Carlyleana, dizendo: “Bolívar es Héroe; San Martín no es Héroe. San Martín es grande hombre, gran soldado, gran capitán, ilustre y hermosísima figura. Pero no es Héroe”. Mas Krauze é enfático a respeito de uma coisa: “Rodó no fue el único carlyleano de la historia intelectual latinoamericana.” Francisco García Calderón publicou, em Paris, o livro Les Démocraties Latines de l'Amérique (1914) com prefácio de Poincaré, futuro presidente da França, com uma análise da história política latinoamericana que “se apartaba del viejo republicanismo clásico” e reduzia “la historia a biografía, propia de Carlyle.” Para explicar a ascendência das democracias no continente, o autor empregou um método dialético que contrapunha barbárie e civilização de tal modo a justificar circunstancialmente o uso da força e da centralização do Estado como fonte reorganizadora de sociedades caóticas. Seu foco, todavia, não tão paradoxal como parece — ele não lê nas democracias nascentes as entrelinhas de tiranias, buscando mesmo nos regimes mais “construtivos” e populares as personalidades carismáticas que mais do que “forjar utopias” foram capazes de impor ordem às divisões sociais e políticas que dificultavam a governabilidade pós-independência, capazes de promover “democracias superiores, democracias del espíritu, no de la vulgaridad electoral.” Escritores de renome universal respirariam essa atmosfera interpretativa:
La democracia es el caos provisto de urnas electorales — Jorge Luis Borges, que aprendeu alemão, segundo Krauze, após a germanofilia de Carlyle infectá-lo!
A democracia é o caos provido de urnas eleitorais.
Até mesmo Juan Domingo Perón recomendara Evita que lesse um de seus livros favoritos: On Heroes, Hero-Worship, and the Heroic in History!
Para Krauze, ditadores como Hugo Chávez seguiram menos a linhagem genealógica de Karl Marx, e muito mais as vertentes populistas de esquerda derivadas de Thomas Carlyle, vejam que interessante! O estudo detalhado de Krauze chega ao ponto de relembrar uma das passagens mais famosas de Carlyle, que compara Bolívar a George Washington, para enfatizar a afinidade entre seu modo de pensamento e aquele estabelecido na prática pelo “regime bolivariano” na Venezuela — ainda que em direta contradição a algumas das teses republicanas mais caras ao próprio Bolívar, que tinha muito mais proximidade de ideias com Edmund Burke do que com Thomas Carlyle:
Pero más allá de su viñeta sobre Bolívar, la vigencia de Carlyle en el régimen bolivariano y, sobre todo, en la mente y la actitud de su líder máximo, está en el concepto del héroe como actor central de la historia (Enrique Krauze, 2011, p. 565).
Mas, além de sua charge sobre Bolívar, a relevância de Carlyle para o regime bolivariano e, acima de tudo, para a mente e a atitude de seu líder supremo, está no conceito do herói como ator central na história.
2. Thomas Carlyle como comentarista político da América Latina:
Vou trazer aqui, apenas para guardar, uma longa citação que encerrará esta parte 1, trecho Dr. Francia, comentário do escritor escocês sobre José Gaspar Rodríguez de Francia, o ‘pai fundador’ do Paraguai.
And Bolivar, “the Washington of Columbia”, Liberator Bolivar, he too is gone without his fame. Melancholy lithographs represent to us a long-faced, square-browed man ; of stern, considerate, consciously considerate aspect, mildly aquiline form of nose ; with terrible angularity of jaw ; and dark deep eyes, somewhat too close together, (for which latter circumstance we earnestly hope the lithograph alone is to blame) this is Liberator Bolivar : — a man of much hard fighting, hard riding, of manifold achievements, distresses, heroisms and histrionisms in this world ; a many-counselled, much-enduring man; now dead and gone : — of whom, except that melancholy lithograph, the cultivated European public knows as good as nothing. Yet did he not fly hither and thither, often in the most desperate manner, with wild cavalry clad in blankets, with War of Liberation, “to the death?” … With such cavalry, and artillery and infantry to match, Bolivar has ridden, fighting all the way, through torrid deserts, hot mud swamps, through ice-chasms beyond the curve of perpetual frost, — more miles than Ulysses ever sailed: let the coming Homers take note of it. He has marched over the Andes more than once; a feat analogous to Hannibal’s; and seemed to think little of it. … He was Dictator, Liberator, almost emperor, if he had lived. Some three times over did he, in solemn Columbian parliament, lay down his Dictatorship with Washington eloquence; and as often on pressing request, take it up again, being a man indispensable. Thrice, or at least twice, did he, in different places, painfully construct a Free Constitution … and twice, or at least once, did the people, on trial, declare it disagreeable. … Truly a Ulysses whose history were worth its ink, — had the Homer that could do it, made his appearance! (Thomas Carlyle, 1843 [1852], pp. 547-548).
E Bolívar, “o Washington da Colômbia”, o Libertador Bolívar, também se foi sem sua fama. Litografias melancólicas nos representam um homem de rosto comprido e sobrancelhas quadradas; de aspecto severo, atencioso, conscientemente atencioso, nariz levemente aquilino; com terrível angularidade no maxilar; e olhos escuros e profundos, um tanto próximos demais (por esta última circunstância esperamos sinceramente que a litografia seja a única culpada), este é o Libertador Bolívar: — um homem de muita luta, cavalgadas árduas, de múltiplas conquistas, sofrimentos, heroísmos e histrionismos neste mundo; um homem de muitos conselhos e muita perseverança; agora morto e enterrado: — de quem, exceto aquela litografia melancólica, o público europeu culto sabe quase nada. No entanto, ele não voou de um lado para o outro, muitas vezes da maneira mais desesperada, com a cavalaria selvagem vestida em cobertores, com a Guerra da Libertação, “para a morte”? … Com tamanha cavalaria, artilharia e infantaria à altura, Bolívar cavalgou, lutando por todo o caminho, através de desertos tórridos, pântanos de lama quente, através de abismos de gelo além da curva da geada perpétua — mais milhas do que Ulisses jamais navegou: que os vindouros Homeros tomem nota disso. Ele marchou sobre os Andes mais de uma vez; um feito análogo ao de Aníbal; e parecia pensar pouco nisso. … Ele foi Ditador, Libertador, quase imperador, se tivesse vivido. Cerca de três vezes, no solene parlamento colombiano, ele renunciou à sua Ditadura com a eloquência de Washington; e com a mesma frequência, a pedido insistente, retomou-a, sendo um homem indispensável. Três vezes, ou pelo menos duas, ele, em lugares diferentes, construiu penosamente uma Constituição Livre… e duas vezes, ou pelo menos uma, o povo, em julgamento, declarou-a desagradável. … Verdadeiramente um Ulisses cuja história valia a pena escrever — se o Homero que o pôde fazer tivesse aparecido!
Todavia, ao contrário do que afirma Krauze, fica claro que o estudo de Carlyle sobre a América Latina não fora escrito como enaltecimento particular de Simon Bolívar — pelo contrário!2 Carlyle, em seu ensaio, contrasta Francia com Bolívar, O’Higgins, San Martín e Iturbide (a quem se refere por “Napoleão do México”), mesmo que sua seriedade analítica leve-o mesmo a considerar o quanto de sua ditadura tinha uma “awful nature”, uma natureza terrível, e uma péssima consideração pela liberdade (“liberty of private judgment, ele escreve, unless it kept its mouth shut, was at an end in Paraguay”).
Os primeiros são retratados pelo escocês como “poor South American emancipators.” Inspirados, diz ele, em Abbé Reynal e Constantin-François Chassebœuf, Carlyle descreve essas grandes personalidades da independência na América Espanhola como pregadores do “gospel of Social Contract and the Rights of Man” (Evangelho do Contrato Social e dos Direitos do Homem) sob circunstâncias muito desfavoráveis, tendo, pois, fracassado em seus esforços de pacificação e ordenação do Cone Sul. Carlyle chega mesmo a tirar sarro deles, focando num daqueles elementos mais cruciais para a formação dos Estados-Nação modernos: a Biblioteca Nacional. Se livros excelentes como o de Nicola Miller, Republics of Knowledge: Nations of the Future in Latin America (2020) notam como os movimentos de independência na América Latina propiciaram a criação pioneira de cátedras de Economia Política, a construção de bibliotecas, de casas editoriais e de universidades na região em comparação mesmo com as metrópoles europeias — Carlyle, todavia, satiriza o quanto desse pioneirismo foi, de fato, efetivo, substancial:
Nay now, it seems, they do possess “universities,” which are at least schools with other than monk teachers: they have got libraries, though as yet almost nobody reads them, and our friend Miers, repeatedly knocking at all doors of the Grand Chile National Library, could never to this hour discover where the key laid and had to content himself with looking in through the windows (Thomas Carlyle, 1843 [1852], p. 550).3
Não, agora, ao que parece, eles possuem “universidades”, que são pelo menos escolas com professores que não são monges: eles têm bibliotecas, embora até agora quase ninguém as leia, e nosso amigo Miers, batendo repetidamente em todas as portas da Grande Biblioteca Nacional do Chile, nunca conseguiu até agora descobrir onde estava a chave e teve que se contentar em olhar pelas janelas.
Seu fracasso coletivo pode ser visto pelo estado deprimente do povo por lá encontrado:
A people that uses almost no soap, and speaks almost no truth, but goes about in that fashion, in a state of personal nastiness, and also of spiritual nastiness, approaching the sublime; such people is not easy to govern well! (Thomas Carlyle, 1843 [1852], p. 550).
Um povo que quase não usa sabão e quase não fala a verdade, mas anda dessa maneira, num estado de maldade pessoal e também de maldade espiritual, aproximando-se do sublime; tal povo não é fácil de governar bem!
O povo paraguaio, ele escreve, era dotado das mesmas características:
The Paraguay people as a body, lying far inland, with little speculation in their heads, were in no haste to adopt the new republican gospel. … Absurd somnolent persons, struck broad awake by the subterranean concussion of civil and religious liberty all over the world, meeting together to establish a republican career of freedom … are not a subject on which the historical mind can be enlightened. The historical mind, thank Heaven, forgets such persons and their papers, as fast as you repeat them. Besides, these Guacho populations are greedy, superstitious, vain. … Such men cannot have a history — though a Thucydides came to write it. (Thomas Carlyle, 1843 [1852], pp. 558-559).
O povo paraguaio, como um todo, situado no interior, com pouca especulação em suas cabeças, não tinha pressa em adotar o novo evangelho republicano. … Pessoas absurdas e sonolentas, completamente despertas pela concussão subterrânea da liberdade civil e religiosa em todo o mundo, reunindo-se para estabelecer uma carreira republicana de liberdade… não são um assunto sobre o qual a mente histórica possa ser esclarecida. A mente histórica, graças a Deus, esquece tais pessoas e seus documentos, tão rápido quanto você os repete. Além disso, essas populações guachos são gananciosas, supersticiosas, vaidosas. … Tais homens não podem ter uma história — nem se um Tucídides tivesse vindo escrevê-la.
Mas após Francia, o ‘paraguaio médio’ sabia ler e escrever, mesmo não sendo dos mais literários — Carlyle escreve que o ditador teria feito “tantas melhorias quanto crueldades”. Francia introduziu escolas, reformou a posse de terra e melhorou a agricultura, reprimiu superstições, melhorou o sistema de justiça legado dos espanhóis, e modernizou o serviço público paraguaio: “peculation, idleness, ineffectuality, had to cease in all the public offices of Paraguay” — o peculato, a ociosidade, a ineficácia, tiveram que cessar em todos os cargos públicos do Paraguai (Thomas Carlyle, 1843 [1852], p. 562). Descrito como um “Reino de Terror”, tão impositivo a ponto de merecer de Carlyle a alcunha de “Dionísio do Paraguai”, em referência à figura histórica de Dionísio I da Siracusa, o regime de Francia soube entregar ao povo paraguaio aquilo que desejaria, pelo relato de Carlyle, após as instabilidades do governo republicano estabelecido em ocasião à independência:
To the eyes of Paraguay in general, it had become clear that such a reign of liberty was unendurable; that some new revolution … was indispensable. … The eyes of Paraguay, we can well fancy, turn to the one man of talent they have, the one man of veracity they have. (Thomas Carlyle, 1843 [1852], pp. 559-560).
Aos olhos do Paraguai em geral, tornou-se claro que tal reinado de liberdade era insuportável; que alguma nova revolução … era indispensável. … Podemos imaginar que os olhos do Paraguai se voltam para o único homem de talento que eles têm, o único homem de veracidade que eles têm.
Foi assim que José de Francia promoveu “the notablest of all these South American phenomena” (o mais nobre de todos os fenômenos sulamericanos), mesmo sem derivar disso qualquer prazer particular:
What they say about ‘love of power’ amounts to little. Power? Love of ‘power’ merely to make flunkies come and go for you is a ‘love,’ I should think, which enters only into the minds of persons in a very infantine state! A grown man, like this Dr. Francia, who wants nothing, as I am assured, but three cigars daily, a cup of mate, and four ounces of butchers’ meat with brown bread; the whole world and its united flunkies, taking constant thought of the matter, can do nothing for him but that only. That he already has, and has had always; why should he, not being a minor, love flunkey ‘power’? (Thomas Carlyle, 1843 [1852], p. 562, citando um tal de Professor Sauerteig, traduzindo diretamente do alemão).
O que dizem sobre ‘amor ao poder’ não significa muita coisa. Poder? Amor ao ‘poder’ apenas para fazer lacaios irem e virem por você é um ‘amor’, eu diria, que só entra na mente de pessoas em estado muito infantil! Um homem adulto, como este Dr. Francia, que não quer nada, como me garantem, além de três charutos por dia, uma xícara de mate e 110 gramas de carne de açougueiro com pão integral; o mundo inteiro e seus lacaios unidos, pensando constantemente no assunto, nada podem fazer por ele além disso. Isso ele já tem, e sempre teve; por que ele, não sendo menor de idade, deveria amar o ‘poder’ de lacaio?
Ao morrer, de fato, a impressão que o povo teria dele não parecia repleta de animosidade. As exéquias proferidas por um tal de Reverendo Manuel em seu funeral solene parafrasearam o Livro dos Juízes da Bíblia para exclamar que, em meio a tantas convulsões sociais no caldeirão político da América Latina, “the Lord, looking down with pity on Paraguay, raised up Don Jose Gaspar Francia for its deliverance” (o Senhor, olhando com piedade para o Paraguai, suscitou Dom José Gaspar Francia para a sua libertação). Carlyle não o perdoa por atos desumanos — e, pois, a alcunha de “precursor do fascismo” parece ainda mais estonteante, a menos que juntássemos no mesmo saco qualquer autor do passado que demonstrasse certo apelo à visão aristocrática que, antes da difusão do Liberalismo, encontrava-se presente no mundo inteiro. Carlyle, sem dúvida alguma, não era um “pós-moderno” antirracionalista; pelo contrário, se Albert Camus estava certo de dizer que o Nazismo foi o cume da ascensão do niilismo como seiva absurda do Poder na Modernidade, Carlyle tinha uma base muito sólida na ética religiosa de seu tempo, e seus comentários políticos, não à toa, foram lidos com gosto por tanta gente precisamente porque suas teses tão modernas ressoavam com as necessidades percebidas da construção dos Estados-Nação que modularam a soberania pós-barroca do período Moderno por excelência. O Nazifascismo, talvez valha dizer, representa a derrocada, o colapso desse romantismo vitalista mas não particularmente nacionalista nem muito menos eugenista de autores como Carlyle e Ruskin.
Bibliography
Enrique Krauze (2011), Redentores: Ideas y Poder en América Latina, Debate, Madri.
Hiroko Willcock (2008), The Japanese Political Thought of Uchimura Kanzō (1861-1930): Synthesizing Bushido, Christianity, Nationalism, and Liberalism, Edwin Mellen Press, Nova York.
Leon Jackson (1999), ‘The Reader Retailored: Thomas Carlyle, His American Audiences, and the Politics of Evidence’, Book History, V. 2, pp. 146-172.
Thomas Carlyle (1843 [1852]), ‘Dr Francia’ In Critical and Miscellaneous Essays, A. Hart, Philadelphia, pp. 547-568, disponível em Archive.Org.
https://www.jstor.org/stable/30227300?read-now=1&seq=1#page_scan_tab_contents
Essa interpretação é também defendida por Robert G. Collmer: https://scholarcommons.sc.edu/cgi/viewcontent.cgi?article=1032&context=ssl
https://archive.org/details/criticalmiscella00incarl/page/n557/mode/2up?q=bolivar